[ANPPOM-Lista] Nilo Batista denuncia a censura inconstitucional: A criminalização do funk

Jorge Antunes antunes em unb.br
Qua Nov 6 18:26:34 BRST 2013


Caros Rubens Ricciardi e Alvaro Henrique:

Afinado com as mesmas reflexões que vocês fazem, em 2012 escrevi um artigo
sobre o tema.
O texto foi incluído na palestra que ministrei na Academia Brasileira de
Música, no mês passado, com o título:* "Ativismo musical: o compositor na
rua".*
Nele analiso o hábito que a burguesia reacionária tem de, com o controle
dos meios de produção cultural-industrial, recuperar e neutralizar as ações
artísticas revolucionárias.
Tal como conseguem transformar Che Guevara em uma mera estampa de camiseta,
eles também conseguem industrializar e banalizar e desqualificar o mais
contestador e revolucionário funk ou rap.
Eis o artigo:

*O ativismo político na música erudita*
*Jorge Antunes*



*Maestro, compositor, membro da Academia Brasileira de Música,Pesquisador
Sênior da UnB, Pesquisador A do CNPqFonte: Revista Continente, edição 139,
julho de 2012*

O rap surgiu na Jamaica na década de 1960, foi levado para os Estados
Unidos dez anos depois e, em seguida, se espalhou pelo mundo. A burguesia
ficou apavorada. As letras da nova manifestação artística falavam das
dificuldades da vida dos habitantes de bairros pobres. O protesto social, a
irreverência e a pregação da violência chegaram a amedrontar os donos do
poder.

Mas o poder de fogo do rap começou a cair quando, na década de 1990, o
gênero despertou o interesse da indústria fonográfica. Hoje, completamente
recuperado, tornou-se manifestação comercial e foi absorvido pelo sistema.
Dessa forma, as falas ritmadas do MC já não assustam a ninguém. Tudo se
tornou banal, comercial e bom para dançar. Não são apenas os jovens pobres
que dançam. As dondocas e as patricinhas também entram na onda. O rap de
protesto e o funk se fazem presentes até mesmo nas novelas da TV Globo.

Platão, em seu programa ético-musical da República, estudou as reações
emotivas da massa popular. Jean-Jacques Rousseau, no século 18, detalhou
alguns aspectos do fenômeno, lembrando que o intervalo de terça maior
excita o sentimento de alegria, podendo chegar a imprimir ideias de furor.
A terça menor, ao contrário, leva as massas à tristeza, despertando ternura
e suavidade. Não é à toa que todos os hinos nacionais, além de usarem ritmo
marcial, são escritos em modo maior. Observa-se, por outro lado, que quase
todos os cantos religiosos e fúnebres são em modo menor. As reflexões de
Platão e Rousseau se juntam a muitas outras que se seguiram, para
demonstrarmos o poder de fogo que a música tem para influir nos destinos do
homem e para formar mentalidades. Sou daqueles que acreditam que a vida
imita a arte.

Em 1966, quando a ditadura militar reprimia violentamente as manifestações
estudantis na Cinelândia, no Rio de Janeiro, escrevi uma obra para
orquestra de cordas e fita magnética intitulada *Dissolução*. Como eu já
estudava Física, todo mundo pensava que o título de minha peça tinha
conotação extra-musical com algo de científico, de Química: a “dissolução”
de alguma substância em laboratório. Mas, na verdade, a conotação era
política e de contestação. Na obra tento descrever, com sons, a dissolução,
feita pela polícia, de uma manifestação estudantil na rua. Na fita, além de
sons eletrônicos, uso ruídos dramáticos de vidraças quebradas.

 Naquela época não era fácil se fazer música engajada politicamente. Eu
conseguia fazer, mas sempre de modo velado, disfarçado. A censura e a
perseguição caiam sempre sobre qualquer obra de arte que insinuasse, em seu
conteúdo ou em seu título, algo referente às questões sociais e políticas.
Os autores de obras daquele tipo, então consideradas subversivas, passavam
a ser perseguidos pelo donos do poder e até mesmo discriminados pelos
próprios colegas artistas. Quem era amigo de um subversivo, corria risco de
também ser considerado subversivo.

 Hoje, os historiadores são sempre limitados quando analisam a censura
praticada contra a produção cultural na época do regime militar. Eles se
atêm ao estudo da repressão sofrida pela imprensa, pela literatura e pela
música popular. Desconhecem, totalmente, a censura que foi imposta, pelo
regime militar, à música erudita brasileira.

Em abril de 1964 minha canção *Cabra da Peste*, escrita para voz de
barítono e piano, foi censurada pela direção da Rádio MEC do Rio de
Janeiro. Para que fosse tocada no programa *Jovens Compositores do Brasil*,
produzido por Dieter Lazarus, fui convidado a fazer nova gravação nos
estúdios da rádio, desde que mudasse a letra da música.

Não faltaram, no passado, histórias de compositores brasileiros, na área da
música erudita, que viveram uma fase de ativismo político através da
música. Cláudio Santoro compôs, em 1953, sua *Quinta Sinfonia*, também
conhecida como *Sinfonia da Paz*, com texto da poetisa comunista Antonieta
Dias de Moraes. Gilberto Mendes, que à época estudava com Santoro, também
escreveu canções engajadas politicamente usando poemas da mesma autora. Da
mesma época data a obra *Canto do Soldado Morto*, de Eunice Katunda, com
texto do poeta comunista Rossini Camargo Guarnieri. Por volta de 1973 o
compositor paulista Willy Corrêa de Oliveira passou a compor unicamente
obras musicais com fins de doutrinação política, militando junto às
Comunidades Eclesiais de Base. Mas essa postura foi abandonada alguns anos
depois.

Esses exemplos correspondem a fatos esporádicos e efêmeros, ocorridos
circunstancialmente nas vidas daqueles compositores. Alguns deles, logo
após aquelas experiências, voltaram a fazer arte pela arte. Outros chegaram
até mesmo a virar casaca e condenar aquelas suas próprias posições do
passado. Esse foi o caso, por exemplo, de Claudio Santoro. Em 1979, num
debate realizado durante a Bienal de Música Contemporânea Brasileira,
Santoro declarou que renegava todo aquele passado de engajamento político e
que se arrependia de ter defendido ideias de esquerda e de tê-las embutido
em algumas obras.

Assim, são raros, no Brasil, casos de compositores de música erudita que
abraçaram e nunca mais abandonaram o ativismo político por meio da música,
tal como aconteceu em outros países. Podemos citar, como exemplos dessas
exceções: o alemão Hanns Eisler, o inglês Cornelius Cardew, o italiano
Luigi Nono, o chileno Sergio Ortega, o italiano Luca Lombardi, o austríaco
Wilhelm Zobl, o grego Thanos Mikroutsikos e o norte-americano Frederick
Rzewski.

 Intelectuais sempre tiveram, e continuam a ter, enorme responsabilidade
com relação ao presente e ao futuro da humanidade. São eles os que,
detentores de credibilidade, conseguem tribunas e espaços para fazer eco às
suas convicções políticas. Por essa razão acredito ser obrigação do
compositor não se encerrar em uma torre de marfim. O compositor que se
tranca em torre de marfim é um compositor criminoso.

 A música popular, mesmo aquela de protesto, sempre foi rapidamente adotada
como mercadoria pela indústria fonográfica. O rap e o funk também seguiram
a mesma trajetória. Mensagens políticas construídas para a venda, não
convencem a ninguém.

 A música erudita moderna e de vanguarda é a única vertente musical que
resta, ainda hoje, não recuperada pelo sistema. Assim, ela passa a ser, ou
a continuar a ser, o único suporte capaz de dar credibilidade a mensagens
extra-artísticas de cunho social ou político.


Em 6 de novembro de 2013 00:40, Alvaro Henrique
<alvaroguitar em gmail.com>escreveu:

> Como um não-acadêmico que estou agora, ouso propôr que a indústria da
> cultura está ligada à mídia de massa, em especial como promotor de um
> processo alienante e alienador que favoreça a manutenção do status quo.
>
> Curioso que outros grupos periféricos, de outros 24, 25 unidades da
> federação tem tudo o que o artigo defende como defensáveis: arte popular,
> irreverência, sensualidade, produto de uma comunidade violenta, e divergem
> muito do funk. Ah, não tem uma rede Globo enlatando, empacotando, e
> ganhando dinheiro via Som Livre em cima deles. Parece-me algo tão "popular"
> quanto isso aqui: http://www.youtube.com/watch?v=Bh7nYvCH9v8
>
>
>
> Abraços,
> Alvaro Henrique
>
> Alvaro Henrique is a Price, Rubin & Partners artist. Info:
> http://alvarohenrique.com/dossie_en.pdf
> Alvaro Henrique plays Royal Classics guitar strings.
> http://www.royalclassics.com/catalogo_artista_detalle.htm?idioma=es&id=42
> ----
> Tel.: +55(61) 9977 0535
> http://youtu.be/5m0IObFP4aM <http://www.youtube.com/watch?v=44Kf0yBMgKU>
>
>
> Em 5 de novembro de 2013 23:19, Carlos Palombini <cpalombini em gmail.com>escreveu:
>
>> Se você for capaz de me explicar o que seja "Indústria da cultura" talvez
>> possamos começar a discutir este ponto.
>>
>> 2013/11/5 Rubens Ricciardi <rrrr em usp.br>
>>
>>  Independente da questão da criminalização sobre a qual nada sei, será
>>> que o funk é mesmo uma “inegável expressão da cultura popular”?
>>>
>>> aliás, o funk é cultura popular ou industria da cultura?
>>>
>>> Rubens R. Ricciardi
>>>
>>>
>>
>> --
>> carlos palombini
>> professor de musicologia ufmg
>> proibidao.org
>> ufmg.academia.edu/CarlosPalombini
>>
>>
>> ________________________________________________
>> Lista de discussões ANPPOM
>> http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
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