[ANPPOM-Lista] Pesquisador da ENSP detido durante manifestação descreve regime de terror

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Sáb Nov 30 20:10:05 BRST 2013


Os porões da democracia: pesquisador detido durante manifestação no RJ revela
torturas e humilhações<http://coletivodar.org/2013/11/os-poroes-da-democracia-pesquisador-detido-durante-manifestacao-no-rj-revela-torturas-e-humilhacoes/>*Se
por um lado a solidariedade, presente entre companheiros da Fiocruz e de
Manguinhos, em especial, foi extremamente importante para mim, por outro, é
surpreendente o silêncio por parte de algumas entidades de classe e parte
do meio acadêmico com relação a esse estado de coisas, onde cresce a
opressão contra a expressão popular nas ruas, o que coloca o Estado
Democrático de Direito como privilégio para poucas pessoas. Também é
desprezível o reacionarismo expresso em artigos e ações de intelectuais
que, outrora, eram consideradas referências importantes para a crítica ao
autoritarismo.*

http://coletivodar.org/2013/11/os-poroes-da-democracia-pesquisador-detido-durante-manifestacao-no-rj-revela-torturas-e-humilhacoes/

30/11/2013
Pesquisador da ENSP detido durante manifestação descreve regime de terror

ENSP<http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/34183>
** André Antunes e Cátia Guimarães*

Ele foi um dos presos políticos da atual democracia brasileira.
Participando de uma manifestação organizada pelos professores municipais e
estaduais do Rio de Janeiro, que estavam em greve, Paulo Roberto de Abreu
Bruno, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
(ENSP/Fiocruz), foi detido junto a dezenas de outras pessoas, no dia 15 de
outubro. Acusado sem provas e sem direito à informação ou à presença de
advogados, foi encaminhado para a delegacia e, na sequência, para dois
presídios, incluindo Bangu 9. Segundo ele, circulou pelos “porões da
democracia brasileira”.

Desde o início de junho, Paulo Bruno vinha filmando as manifestações que
tomaram as ruas do Rio de Janeiro como parte do seu trabalho de pesquisa.
Levou algum tempo para que conseguisse falar sobre o assunto, mas, nesta
entrevista – concedida aos jornalistas da Revista Poli – ele narra as
humilhações e violências sofridas pelos presos políticos, descreve a rotina
de violação de direitos do sistema carcerário brasileiro, destaca a
solidariedade dos presos comuns e chama a atenção para a fragilidade das
lutas políticas diante do terror que o Estado – representado, no caso, pelo
governo estadual – pode provocar. Como, na prisão, não tiveram acesso
sequer a papel e caneta, os detalhes que se seguem ficaram registrados, até
então, apenas na memória do entrevistado.

*Você está sendo acusado de quais crimes?*


*Paulo Bruno:* Dano ao patrimônio, roubo, incêndio e organização criminosa.
Eu fui preso por volta de 22h30 do dia 15/10 e, no entanto, no documento
que assinei no IML constava como se eu tivesse quebrado alguma coisa, por
volta das 18h, nas proximidades da rua Evaristo da Veiga. Não há nada
quebrado lá. Além disso, nesse horário estava a caminho da Avenida
Presidente Vargas, depois de embarcar num trem do metrô na estação de Del
Castilho, acompanhado de duas pessoas com as quais trabalho.

*Vocês sabiam que estavam sendo presos, para onde estavam indo e por quê?*

*Paulo Bruno:* Não. Estava na escadaria da Câmara dos Vereadores, e o
policial só me puxou. Eu tropecei na alça da mochila e minhas moedas se
espalharam. Reclamei disso e, autorizado a recolhê-las, pude me recompor.
No ônibus, outro policial mais novo, com pouco menos de 30 anos, talvez,
ficou perto da porta e mandou entrar. Nisso foram entrando pessoas. Na
Evaristo da Veiga, próximo à avenida Rio Branco, alguns manifestantes ainda
tentaram impedir que o ônibus saísse, e os policiais que estavam em frente
ao Municipal jogaram bomba de efeito moral para dispersá-los. O ônibus foi
embora com uma escolta, vinham dois de moto — de negro também, acho que
eram do choque —, com a arma apontada para a gente, dizendo para fechar a
janela, xingando. Tentamos abrir a janela e um deles dizia: ‘fecha a
janela, senão jogo gás de pimenta em vocês’. Aí fechamos a janela. Até
então o pessoal estava revoltado, ninguém tinha noção do que iria
acontecer. Eu falava para ter calma, era o mais velho. A gente tinha que
estar sempre calado, e em nenhum momento falaram para onde iríamos. Na
delegacia, permanecemos a maior parte do tempo no ônibus. Ficamos lá de
molho até as 12h30 do outro dia. Soubemos que duas pessoas que estavam na
25ª [DP], se não me engano, ficaram em condições bem piores, num lugar
alagado, com um banheiro. No nosso caso, ficamos em lugares da delegacia,
sentados ou de pé, e depois retornamos para o ônibus. Recebemos orientação
dos advogados que chegaram à 37ª DP, algum tempo depois, de só depormos em
juízo. Passamos uma procuração para os advogados do DDH [Instituto de
Defesa dos Direitos Humanos] e não depusemos.

*Como foi a transferência para o presídio?*

*Paulo Bruno:* Pouco antes de 12h30 os carros começaram a se movimentar.
Vimos chegar aquele furgão usado pelo batalhão de choque, começaram a
deslocar os carros em frente à delegacia, a gente previu que fosse
acontecer alguma coisa. Imaginamos que iríamos ser transferidos, mas não
sabíamos para onde, porque não falaram. Alguns PMs começaram a ser mais
irônicos e mais agressivos com palavras. Quando alguém pedia alguma coisa,
respondiam de forma irônica. Sempre de forma intimidatória. Até que,
meio-dia e pouco — imagino que o horário era esse, porque também não
tínhamos relógio —, colocaram a gente na traseira desse furgão, que era
dividido no meio, com dois bancos laterais. Ia uma pessoa em pé e outra
sentada, algemadas. Eu não tinha noção de que algema era objeto de tortura.
Para mim, era só para segurar a mão do preso. Mas, conforme você vai
mexendo, ela vai apertando. Então, assim que o carro saiu, a algema
encaixou no osso do meu pulso, causando uma sensação muito ruim, eu tentei
mexer e percebi que ela apertou. Fomos para o IML [Instituto Médico Legal].
Nessa hora eu já não aguentava mais, pedi para tirarem e acabaram abrindo
[a algema] lá. Mas isso nem contou lá no exame de corpo delito, porque é
uma coisa muito rápida, os caras não querem muita conversa. O tratamento
que a gente recebeu em todo momento, a não ser em poucas ocasiões, no
interior da 37ª DP, era como se fôssemos criminosos. Dali saímos também sem
que falassem nada. Nos algemaram de novo, colocaram no furgão e fomos para
São Gonçalo, para o presídio Patrícia Accioly, no bairro Guaxindiba. Nas
transferências, você é sempre humilhado, chamavam a gente de ‘black bosta’,
criminosos, assassinos, vagabundos, vândalos etc. Na saída da 37ª, dois
policiais nos chamaram de criminosos, falando que seríamos estuprados no
presídio. Diziam que iríamos pagar por termos nos metido com policial, que
tínhamos matado o amigo deles, incendiado o carro [da polícia]. Tentavam
nos filmar com seus celulares. Quando chegou lá, em Guaxindiba, novamente
um cardápio de ofensas e atos para nos amedrontar. Você entra, tira a
roupa, fica de cócoras, levanta a sola do pé, mão, tudo para ver se está
com algum objeto, e depois te encaminham nu para receber calção e camiseta.
Para lá a gente foi com a roupa do corpo.

Na delegacia da Ilha do Governador, deixamos as coisas com os advogados,
porque tinham avisado que iríamos perder tudo no presídio. Primeiro ficamos
acocorados num corredor dos presos de alta periculosidade (segundo eles
próprios). A primeira pergunta de um desses presos foi se a gente tinha
dinheiro. Todo mundo de mão para trás e cabeça para baixo, em pé ou
sentado. Não demos ouvido. Começaram a perguntar o que a gente fez, mas
ninguém respondeu. Por fim, ele perguntou se a gente estava em
manifestação. O preso da frente falou ‘esse Cabral é um filho da puta, tem
que sair!’ e o da cela de trás concordou: ‘É isso mesmo!’.

Dali fomos para uma cela num corredor e ficamos só nós, os presos
políticos. Eram celas para seis pessoas, com três beliches de cimento. No
canto, o banheiro, com um buraco no chão – um vaso sanitário, chamado de
‘boi’ na linguagem da cadeia – e um chuveiro no alto, sem registro. A gente
descobriu que a água era aberta duas vezes ao dia. Foi ato contínuo
entrarmos na cela e todo mundo se apresentar. As pessoas não se conheciam.
A sensação de solidariedade coletiva minimizava a apreensão causada nos
deslocamentos [DP-IML-presídio]. Entrar na cela naquela circunstância era
como ‘chegar em casa’: enfim, apesar da falta de banho, teríamos a
possibilidade de deitar e descansar.

*Como foi a rotina dentro do presídio?*

*Paulo Bruno:* Inicialmente fomos informados sobre como funciona o sistema.
Rasparam a nossa cabeça também antes de entrarmos na cela. Recebemos
sabonete, escova de dente e creme dental. Toalha não! Os presos mais
antigos e com bom comportamento fazem o serviço de cortar o cabelo, dar
informes sobre o funcionamento, servir as refeições. Eram feitos três
‘conferes’ ao dia: gritavam no corredor (Confere!), ou tocavam na grade e
você teria que se posicionar (erguido, mãos para trás e olhar para o chão)
para eles contarem. Tinha pão e café pela manhã, almoço, jantar e um copo
de uma bebida que parecia guaravita. A gente foi se acostumando com a
rotina. No primeiro dia, não chegou água. Chegamos ao presídio quatro horas
da tarde talvez, estando desde o dia 15 sem tomar banho – já era dia 16,
anoitecendo. Falaram que abririam a água por dez minutos. Nesse dia abriram
a água devia ser 3h da manhã. Tinha muito mosquito nesse presídio. Já
trabalhei na Amazônia, andei em várias aldeias, mas nunca vi coisa igual.
Não dava para dormir. Eles deram um cobertor e a esperança era que o
cobertor ajudasse. No meu caso, era velho e furado, então não adiantava
porque os mosquitos entravam. Essa primeira noite foi sofrida. A gente meio
que fica na expectativa de sair, mas já estava conversando e encarando a
possibilidade de ficar mais tempo. As longas conversas entre o grupo que
dividia a cela e a comunicação com outros presos políticos de outras celas
serviram para nos mantermos num estado emocional equilibrado. Na segunda
noite nesse presídio já havíamos aprendido a fazer incensos com papel
higiênico, o que afastava os mosquitos, mas deixava a cela esfumaçada.

*Vocês receberam a visita de alguém?*

*Paulo Bruno:* Primeiro, recebi visita dos advogados da Asfoc [Sindicato
dos Trabalhadores da Fiocruz], Jorge da Hora e Fábio. Eles falaram da
mobilização que era prevista para acontecer na Fiocruz e perguntaram sobre
o meu estado. Receber notícias de fora do presídio causou um sentimento
desconhecido. Não tinha a menor ideia do que poderia estar acontecendo do
lado de fora. Era como se estivesse também com o pensamento aprisionado,
apesar de consciente do que acontecia. Depois, na tarde do dia 17, chegaram
os advogados do DDH e uma advogada ligada a uma ONG que trabalha com
direitos humanos em presídios. O trabalho dela consiste em visitar todos os
presídios do sistema do Rio de Janeiro e ver as condições dos presos. Acho
que tinha alguém da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia
[Legislativa]. Um pouco depois chegou o [deputado estadual] Marcelo Freixo.
Fizemos duas reuniões num refeitório, onde tivemos a primeira oportunidade
de ver o conjunto dos presos. Dos 19 que éramos quando chegamos à 37ª
delegacia, ali já éramos 62. Todo mundo se cumprimentava, apertando a mão.
Recebemos uma carta de pessoas de fora. Foi um momento de muita emoção e
houve um agradecimento a elas. Aquilo foi muito bom porque a gente estava
isolado. É outro universo: no presídio você não tem essa dimensão do que
acontece do lado de fora. É outro mundo. Tínhamos consciência de que éramos
presos políticos. Foi nosso primeiro contato coletivo com o mundo. O
Marcelo Freixo me pareceu muito abatido, falando que a situação era grave,
que ele nunca tinha presenciado uma situação como essa no Rio de Janeiro.
Comentou que se falava em colocar as forças de segurança nacional na rua e
que o Beltrame chegou a aventar isso. E a imprensa estava jogando pesado na
nossa criminalização.

*E a transferência para Bangu 9?*

*Paulo Bruno:* Na madrugada do dia 17 para o 18, umas 3h30 da manhã, fomos
acordados pelos caras batendo [na grade]. ‘Sai, sai. Deixa tudo!’,
gritavam. E os meus óculos ficaram na cela. Foi o momento de maior tensão:
escuro, aqueles caras enormes todos de preto, gritando muito. A sensação,
pelo tratamento, era de que iriam executar a gente. Colocaram a gente num
pátio externo, sempre gritando, humilhando, xingando. Eu não fui agredido,
mas uma parte do grupo foi agredida com palmatória. Eles queriam que o
pessoal dissesse por que o estuprador da Rocinha estava com a orelha
cortada e o rosto queimado. Tinha três presos comuns com a gente, um deles
era esse estuprador e alguém queimou o cara, só que ele não dividiu cela
com a gente em nenhum momento. Mas os caras queriam que a gente dissesse
quem foi. Isso eu ouvi do lado de fora de um portão grande de ferro. Fui
colocado para fora com outro grupo, de cabeça baixa. Chovera e o chão
estava molhado e todos nós estávamos descalços (desde são Gonçalo até a
libertação permanecemos nesse estado).

Começamos a ouvir interrogatório e, em seguida, batidas e as pessoas
gritando. Depois soubemos que era a palmatória de madeira. Isso durou
alguns minutos. Fomos colocados num ônibus todo escuro. Dessa vez, sentamos
quase todos. Um dos presos políticos estava por desmaiar e outros se
esforçavam para mantê-lo acordado. Não era possível ver os rostos mesmo dos
que estavam mais próximos de nós. Havia pouca circulação de ar. O Freixo
havia dito que possivelmente iríamos para um presídio próximo para aguardar
uma solução na justiça. Seria um presídio em São Gonçalo, que ele disse que
era mais tranquilo, que estava disposto a aceitar o grupo, tinha espaço.
Como eles tiraram a gente de madrugada, só podíamos imaginar para onde
estávamos indo, porque estava escuro e, sem relógio nem nada, você perde a
noção de espaço e tempo. Só sentíamos o balanço do ônibus, só sabíamos que
estávamos em rua esburacada. Depois de algum tempo, pela batida e por
alguma luz que entrava, nos demos conta de que estávamos cruzando a ponte
Rio-Niterói. Mas, adiante alguém exclamou: ‘Deodoro!’. Pouco depois
chegamos ao Complexo Penitenciário Gericinó, mais especificamente, no
presídio Bangu 9, e foi novamente aquela coisa de os caras nos tratarem
mal. A fala e a atitude de um policial ficou impregnada na minha memória:
‘Só tem vocês dois de pretos aqui?’. Em seguida segurou a cabeça de um
deles e bateu algumas vezes contra a parede. Teve outro preso político que
pedia insistentemente para ir ao banheiro, que não aguentava mais. Estava
muito próximo de mim. Gemia… Eu sussurrava para ele: respira fundo. Os
caras apenas ironizavam e procuravam humilhá-lo. Mesmo depois de uns cinco
pedidos desesperados, o rapaz não teve autorização e evacuou nas calças.
Depois disso ordenaram que lavassem o chão.

Fomos para a cela. Quando a gente passa pela triagem, perguntam qual a
nossa facção e são apresentadas as seguintes opções num formulário: Comando
Vermelho, Amigo dos Amigos, Povo de Israel, milícia ou neutro. Nos
identificamos como neutros e ficamos numa galeria juntos com o Povo de
Israel, que são os presos que se converteram. O melhor de Bangu é que tinha
uma torneira com água 24 horas; no outro não tivemos nem água para beber
até a primeira abertura do chuveiro; para banho, muito menos. Se
quiséssemos beber aquela água imunda, pelo menos havia água, não iríamos
morrer de sede. Mas a cela era mais estreita, escura, úmida e quase não
tinha espaço para circular. Parece que circulou a informação de que haveria
visita do pessoal dos direitos humanos. Aí deram um jeito de transferir a
gente para outra cela no final do corredor, onde entrava luz no final da
tarde, tinha sol, foi um alento. Além de um pardal que entrava e saía da
cela através da grade no alto da parede (no final da tarde ele se alojou
num buraco no teto da cela). Dessa cela ouvíamos cantos de outros pássaros.
Recebemos somente um lençol branco e limpo que, pelo fato de ser bem largo,
dava para cobrir a espuma sobre a qual deitava e, ao mesmo tempo, servir de
coberta. As poucas horas que restavam da madrugada permitiram um breve
cochilo. No dia 18, acordei com a sensação de que sairia: lavei minha
camiseta no banho com caneco e sabonete. Eu pretendia sair limpinho do
presídio, estava imundo. Nessa passagem por Bangu, os presos receberam a
gente bem. Eles falavam que a gente representava os parentes deles do lado
de fora, que a luta era por eles também. Foram acolhedores e respeitosos
conosco.

*Quando você soube que seria solto?*

*Paulo Bruno:* Durante reunião com o pessoal dos direitos humanos, que
aconteceu justamente no corredor, diante da cela onde eu e mais cinco
presos estávamos, deram a informação de que tinha saído um habeas corpus. E
que a partir desse habeas corpus, em meu nome, a juíza estendeu o benefício
para os outros. Dali, voltamos para a cela. O habeas corpus só chegou ao
presídio no final da tarde. Nesse meio tempo, chegaram advogadas do DDH, a
Luiza Maranhão e mais duas que conheciam pessoas comuns a mim e a outros
dois presos. A gente foi conversar com as advogadas e, na volta, foi
interessante porque um preso parou a gente para conversar no corredor, onde
havia outros dois presos soltos. Esse preso falou: ‘Pára que aqui é
tranquilo, pode parar’. Parei. ‘Aperta minha mão aí’. Apertei. Tinha outros
três na grade festejando a gente e que também queriam apertar as nossas
mãos. Eu saí, o Deo [professor da rede municipal do Rio, companheiro de
cela] veio mais atrás, parou um pouco e conversou com eles. Eles falaram:
‘Ah, você é professor?A gente é aluno do crime, a gente veio agradecer
vocês’. Surpreendeu a gente: por incrível que pareça, tivemos a
solidariedade de quem – os policiais falaram – iria nos maltratar. Enfim,
foi o ultimo dia lá, saímos à noite. Durante a oração que é feita sempre às
18h, segundo comunicara o preso que servia as refeições, momento em que os
presos leem trechos da Bíblia, discursam, cantam — as falas e canções
pareciam ter sido construídas no próprio espaço carcerário, pois falavam
muito da situação dos presos —, um dos carcereiros fez uma chamada no
início do corredor, o que interrompeu a oração e criou um estado de
suspense. Chamaram os nomes dos nove primeiros libertos. A nossa saída pela
galeria foi algo comovente! Braços eram estendidos para fora das celas para
nos cumprimentar. Olhos brilhantes nos acompanhavam enquanto aguardavam
cumprimentos. Ouvia-se um grito: Liberdade! Esperamos quase duas horas fora
da cela. Depois saberíamos que foi feito de tudo para que ficássemos mais
tempo presos, apesar de os advogados da Asfoc já terem obtido dois habeas
corpus antes daquele que definiu a saída do nosso grupo, detido na 37ª DP.

*Dá para descrever os momentos de pavor?*

*Paulo Bruno:* Tem um pavor que é para disciplinar o corpo e, no nosso
caso, intimidar. A todo momento falavam que, como era a primeira vez, a
gente estava sendo tratado como homem, e que da próxima seríamos tratados
de forma diferente. Falavam para que tomássemos cuidado para não voltar
para lá. E funciona: nessa noite mesmo tive um sonho com um monte de
policial de fuzil atirando nas pessoas aleatoriamente. Isso num nível
psicológico. [Mas teve] o físico também, eles bateram em algumas pessoas.
Imagino que elas estejam mais frágeis do que eu. Tem essa coisa de incutir
o medo. É uma espécie de pedagogia do terror, de você ser educado para não
se manifestar, não questionar. Tanto que os últimos atos estiveram meio
vazios, as pessoas estão recuando porque foi feita uma coisa exemplar. Isso
me faz pensar que essa estrutura de terror não se extingue com mudança de
governo, eleições, ela está muito bem estruturada como sistema de tortura…
Aparentemente é um sistema legal, no entanto, é uma estrutura em que você
entra e é engolido. Quando vem pressão de fora, é diferente. Fora isso, é o
sistema de terror. É impossível ressocializar (como sugere o calção que
recebemos, com a sigla SEAP e a palavra ressocialização) em tais condições.

*Você diz que existe uma pedagogia do terror que funciona. Como é voltar a
uma manifestação agora? *

*Paulo Bruno:* Eu soube de pessoas que não pretendem voltar a manifestações
por enquanto. Para mim foi difícil. Nos arredores da Cinelândia, uns dias
depois da minha libertação, quando vi o carro e um micro-ônibus da polícia,
foi uma sensação muito estranha. Eu fui para casa. A sensação é de que iria
repetir tudo que eu falei anteriormente, uma coisa incontrolável, não de
ser preso, mas de sentir tudo o que eu senti, de escuridão, de ser puxado
para o escuro. De ter sido sequestrado. Mudou também o meu olhar com
relação aos policiais. Eu tinha a expectativa de que pudessem se portar
como trabalhadores, servidores públicos. Agora eu até entendo a situação de
precariedade, que os caras têm que fazer isso para sobreviver, a questão da
hierarquia militar etc., mas os possíveis resquícios de solidariedade
diminuíram muito. Com a forma como muitos deles tratam as pessoas, não dá
para perceber qualquer sinal de compaixão.

*Qual a sua avaliação com relação ao sistema judiciário e carcerário
brasileiro, considerando a situação daqueles que passaram por essa
experiência?*

*Paulo Bruno:* Se você está na mão do Estado, está refém do Estado. Estamos
em situação de fragilidade. Hoje, os grupos mais conservadores estão unidos
em torno de um projeto que, a pretexto de viabilizar a Copa do Mundo e as
Olimpíadas, visa frear manifestações para assegurar o uso da máquina e dos
recursos públicos para garantir os grandes investimentos, o lucro, a
expropriação de terras. Não temos certeza se, quando formos a julgamento,
podemos ganhar. Essa sociedade democrática que a gente vive é para quem não
está dentro desse sistema prisional, só serve para quem nunca passou por
lá. Depois que você cai ali, vê que é tudo muito frágil. No escravismo
brasileiro, até o século 19, os escravos que cometiam os ‘crimes’ de fuga
das fazendas ou atentado ao ‘seu senhor’, por exemplo, eram
marcados/queimados com a letra ‘F’. Algo aparentemente superado
historicamente se repete com a ‘marca’ que a ‘passagem’ pelo ‘sistema’
deixa em nós. Qualquer um pode ser pinçado, cair ali e pronto! O objetivo
dos grupos que controlam as estruturas de poder do Estado é ter você na mão
e prorrogar esse processo por anos. Qualquer um de nós, se voltar, com
certeza, terá outro tratamento. Eles nos avisaram! Há os que ainda
acreditam na possibilidade da luta, garantida nos ‘direitos constituídos’.
Penso que não tem mais direito constituído… Se por um lado a solidariedade,
presente entre companheiros da Fiocruz e de Manguinhos, em especial, foi
extremamente importante para mim, por outro, é surpreendente o silêncio por
parte de algumas entidades de classe e parte do meio acadêmico com relação
a esse estado de coisas, onde cresce a opressão contra a expressão popular
nas ruas, o que coloca o Estado Democrático de Direito como privilégio para
poucas pessoas. Também é desprezível o reacionarismo expresso em artigos e
ações de intelectuais que, outrora, eram consideradas referências
importantes para a crítica ao autoritarismo.

*Ainda tem gente presa…*

*Paulo Bruno:* Tem o Jair e o Rafael, um morador de rua. Ambos negros.
Segundo as notícias que circulam na internet, o Rafael foi preso num prédio
abandonado na Lapa, onde ele estava morando. Foi no dia 20 de junho, aquele
em que a polícia saiu jogando bomba de gás para todo lado. Ele estava
caminhando para o lugar onde iria dormir com uma garrafa plástica de
detergente e uma de água sanitária, e alegaram que ele estava com material
inflamável, com líquidos para produzir incêndio. Foi preso. O cara é
morador de rua, está há cinco meses preso, e esteve, durante algum tempo,
sem defesa. Já o Jair parece que foi preso por desacato, e, pelo fato de
ter passagem anterior, estão dificultando o caso dele. Na reunião com as
advogadas, no Bangu 9, foi falado que estava sendo difícil conseguir o
habeas corpus para ele.

*Você falou que estávamos muito fragilizados e houve uma grande união de
forças para acabar com as manifestações. Mas mesmo depois dessa experiência
traumática, você continua indo. Por quê?*

*Paulo Bruno:* O que impulsiona a gente a participar é a solidariedade.
Aqueles que decidiram o que fazer conosco não têm noção de que, dentro da
cadeia, possibilitaram a construção de uma solidariedade entre pessoas que
nem se conheciam. Criaram uma liga entre essas pessoas, conheci pessoas de
caráter muito firme. A grande maioria lá ficou muito solidária. Eu vejo que
toda essa experiência ruim, de aprisionamento, de repressão, está
consolidando um grupo de muitas pessoas com discernimento sobre os fatos e
sobre as injustiças presentes em nossa sociedade. Tive oportunidade de
rever pessoas que dividiram cela comigo num ato recente de solidariedade
aos presos e ex-presos. Algo inexplicável, a repressão produzira laços de
amizade e confiança.

Eu volto para as manifestações com a vontade de filmar, mas não sei se vou
continuar filmando por enquanto, apesar de querer dar continuidade aos
registros históricos e etnográficos que iniciei em junho. Vivemos um
processo histórico muito vigoroso e complexo sobre o qual precisamos
refletir muito, e para isso é necessário que ele seja registrado a partir
de olhares diversos. Sou apenas um deles. Também não dá para abdicar de
questionar o sistema da forma como está colocado. Afinal de contas, é
difícil pensar na construção de um conhecimento científico neutro,
principalmente, se levarmos a sério o que sugeria Paulo Freire ao dizer que
toda neutralidade afirmada corresponderia a uma opção escondida.

Assim, a passagem pelo sistema prisional e carcerário não poderia ofuscar o
nosso olhar sobre a sua dinâmica, sobre a forma como atuam os servidores
públicos que os mantêm ativos e, sobretudo, sobre as condições nas quais se
encontra seu ‘público-alvo’, formado por pobres, negros e mestiços em sua
grande maioria. Nessa perspectiva, é difícil observar sem críticas um
serviço público, financiado com recursos públicos, utilizado para punir
parte desse público (presos, seus parentes e amigos). A crítica a esse tipo
de serviço não pode ser colocada sem a devida correlação com toda a
estrutura de governo do qual faz parte. Na atual conjuntura, essa crítica
pode resultar na marcação de um ‘F’ nas nossas costas ou no nosso
encarceramento.

** Entrevista concedida a André Antunes e Cátia Guimarães – Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)*
Confira, no link acima, um vídeo especial das ações da ENSP/Fiocruz sobre a
mobilização ‘Lutar não é crime! Somos todos Paulo Bruno’, promovida em
repúdio a prisão do pesquisador da Escola, Paulo Roberto de Abreu Bruno.

-- 
carlos palombini
professor de musicologia ufmg
proibidao.org
ufmg.academia.edu/CarlosPalombini
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