[ANPPOM-Lista] Naufrágio de Kleônicos

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Qui Maio 7 14:20:57 BRT 2015


Eu continuo sem achar minha cópia do livro do Guérios e talvez o comentário
dele não seja sobre *O naufrágio de Kleônicos*, mas sim sobre o enredo
clássico de *Amazonas*. É uma situação difícil escrever uma nota de
programa sobre um poema sinfônico cujo poema se desconhece!
Talvez se você focar sua busca em Leo Teixeira Leite Filho.

Sabe-se pela coluna social d'*A Época*, de 16 de setembro de 1919, seção
"Viajantes",  que "Para Roma seguiu o dr. Léo Teixeira Leite Filho, que vae
occupar seu posto de segundo secretario de Legação".

http://goo.gl/mldi7b

Sabe-se por *Villa-Lobos: sua obra*, que o argumento foi retirado do
livro *Loulou
Fantoche: fantasia de Carnaval*, curiosamente, publicado um ano após a data
do bailado.

http://goo.gl/myYWT7

O argumento você acha em Medeiros e Albuquerque (da Academia
Brazileira), *Paginas
de critica*, 1920. A crítica é deliciosa, *Loulou Fantoche* "E' a historia
de uma rapariga cocainomaniaca que, farta de aturar os ciúmes do amante,
aproveita uma noite de Carnaval, sahe, tem uma aventura com outro homem e
quando, ao voltar, acaba de soffrer as reprimendas do amante, convida,
entretanto, o segundo para uma nova entrevista." Para Medeiros e
Albuquerque, "Não valeria, porém, a pena encorajar os homens de letras a
imitar os médicos, que vivem a publicar folhetinhos de casinhos sem
importância alguma e, desde que fazem apparecer um artiguinho em qualquer
revistinha, apressam-se em tiral-o á parte em uma brochurasinha." Ainda
assim, "O conto é bem escripto, gracioso." A crítica reproduz o trecho em
que a "rapariga cocainomaniaca" dança.

Em recuo gracioso, a rapariga collocara-se immovel no centro do varandim;
> empallidecera, como se uma grande emoção fosse prostral-a… e, sobre a ponta
> dos pés, se erguera, na clássica attitude das bailarinas pagas.
>
> Estendeu, em seguida, para o sol, que nascia, os braços nus, em longo
> gesto sagrado de invocação e, em movimentos irregulares de que o corpo
> inteiro partilhava, começou a interpretação da phantasia, com que sonhara,
> vezes incontáveis, diante dos espelhos — os grandes espelhos da sua alcova
> em silencio.
>
> Cadencia bizarra e suggestiva os seus movimentos, rythmo marcado por uma
> orchestra ideal, que só ella ouvia… Sua musica tinha o compasso extranho
> das tentações, que, como cataclysmos, sacodem montanhas… depois era a
> vertigem dos abysmos insondaveis e a explosão delirante da tragedia das
> tempestades.
>
> As dansas antigas, com suas attitudes arrojadas e suas acções reclamando
> agilidade possante dos músculos e a delicadeza representativa dos gestos;
> os bailados sagrados e as dansas interpretativas das pinturas de Herculanum
> e de Pompéa, com suas figuras audaciosas, curvas ágeis e meneios sensuaes,
> entravam nessa creação de seu espirito — decalque de hellenismo com
> illuminuras delicadas de textos mythologicos, illustrando o episódio
> clássico do naufrágio de Kleonikos…
>
> O inicio era a invocação ás divindades marinhas e aos Zephyros, nascidos
> dos arquejos do Oceano, harmoniosos como as suas vagas.
>
> Navio que partisse, cheio de mercadorias de Kelessyria com destino a
> Tassos, vogaria sereno, em pleno mar, no verão; no outomno, tempestades e
> imprevistos, quasi sempre fataes, assaltavam os marinheiros, que tentassem,
> na sua audácia louca, a travessia…
>
> Pela cordoalha, passa, em vôo altaneiro, um cysne negro, grande e
> magestoso como as trevas.
>
> O piloto, que consultara os augures, ordenou, tremendo, que se recolhesse
> o velame.
>
> As ondas se animam em baloiço de tempestade; o vento silva; o mar sê
> encapella.
>
> Unisonos sóbem ao Olympo o coro de supplica da marinhagem franzida de
> pavor… e depois, de cada recanto da náo, nomes amados de mulheres, que
> ficaram no porto da partida, os braços nús, os collos nús, soltos os
> cabellos, rostos banhados em prantos agoureiros…
>
> — Prothyréa!
>
> — Barthylê!
>
> — Sybaris!
>
> — Hymera!
>
> Gritos lancinantes e a desordem a bordo, toda a desordem, que o pavor
> gera, e a inconsciencia do medo.
>
> O sol num horizonte de tarde, desfallece sobre a mancha de ouro velho do
> poente.
>
> Esvoaça de novo, sinistramente, sobre a galera o cysne preto; a náo se
> fende ao meio, como si um raio a attirjorira; os marinheiros succumbem, nas
> ondas revoltadas.
>
> Kleonikos vae morrer, com a coragem dos pilotos que tentam o inexplorado
> de mares tenebrosos; da náo despedaçada a uma taboa se agarra e um remo
> forte a governa.
>
> O cysne passa, agoureiro, sobre a sua cabeça; pensamento doloroso paralysa
> seus movimentos de habil remador.
>
> — Glaucionê! Glaucionê!
>
> A ave desce, em vôo vertiginoso, sobre o naufrago, o bico aberto e as
> plumas eriçadas pela colera.
>
> Na lucta, a ave se ferira e o marujo mergulhara, para sempre no abysmo
> profundo, emquanto a ave tenta voar pelo ether. Agita, debalde, as azas;
> boleia o corpo, contorse o colo e canta, no grande anceio de quem vae
> cantar, pela derradeira vez, o mais lindo dos
> cantos.
>
> Sua voz se extingue, na garganta em soluços; as ondas os recolhem, para
> repetir ás areias da praia e seu corpo, o gracioso corpo todo coberto de
> negras plumas sedosas e brilhantes, voga ao sabor das ondas atormentadas,
> dos macaréos e dos ventos, illuminado pelos derradeiros raios do sol, que
> empallidece angustiosamente, ao longe.
>
> A rapariga acompanhara as mais caprichosas expressões da sua phantasia de
> movimentos, na interpretação desse episódio mythologico, que escolhera para
> dansar, com a beatitude das grandes horas solemnes da vida e que se não
> repetem…
>
> Como o cysne negro morre, em convulsões, ella cahira, em agitação nervosa,
> desalentada.
>
> Pouco a pouco, serenára; mas desfallecera, banhada em suor e innundados de
> lagrimas os mysteriosos olhos negros.
>

*Paginas de critica* faz parte da Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin e foi digitalizado pela USP. O excerto acima está numa grafia
curiosa porque a função selecionar, copiar e colar se dá ao prazer de
"corrigir" a grafia de 1920. Mas você acha o original aqui:

http://goo.gl/1FtO7o

Outro conto de Leo Teixeira Leite Filho deu origem a um filme, *A Derrocada*,
em 1924:

https://goo.gl/Am2Vc5

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-- 
carlos palombini
professor de musicologia ufmg
professor colaborador ppgm-unirio
ufmg.academia.edu/CarlosPalombini <http://goo.gl/KMV98I>
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