[ANPPOM-L] Sobre o espet á culo "Luar Trovado", baseado em "Pierrot Lunaire" de Schoenberg

Jorge Antunes antunes em unb.br
Ter Jun 12 10:41:10 BRT 2007


Caros Zé Luiz, Fernando e Carlos:

Gostei muito da discussão sobre o tema do diálogo Pierrot & Funk.
Não vi e não gostei.
As opiniões de vocês, que assistiram, corroboram meu vaticínio.

Gostaria de informar que apresentei, em 2005, nos CCBBs do Rio e de Brasília, espetáculos que também colocavam no palco linguagens tradicionalmente consideradas antagônicas.
Estou me referindo à série intitulada Speculum Brasilis.
Os espetáculos eram do tipo "non stop". Cada um deles mesclava música eletroacústica (pré-gravada, sintetizador analógico e computador) com uma manifestação musical popular. O primeiro espetáculo usava o chorinho com bandolim (Hamilton de Holanda). No segundo tínhamos o grupo de bumba-meu-boi do Seu Teodoro. O terceiro contava com a participação de um coro de câmara cantando canções folclóricas. O quarto tinha a viola caipira (Roberto Corrêa).
Cada um desses espetáculos usava a simultaneidade das linguagens. Diálogos esporádicos, linguagens alternadas, também eram usados, mas com breves durações. Assim, o que acontecia predominantemente era a fusão.
Em boa parte do tempo em que a tradição popular atuava, eu a processava no computador em tempo real com o GRM-Tools no G4.

A seguir relato o que mais interessa.
No Rio teríamos que apresentar um quinto espetáculo. Para este estava prevista, no projeto, a participação do funk carioca com a Tati Quebra-Barraco.
O meu produtor entrou em contato com ela, que o enviou ao seu empresário (creio que este era seu próprio marido).
Não deu certo, porque o empresário era arrogante e exigia uma fortuna de cachê.
Depois convidamos o Claudinho Bochecha. O empresário desse foi mais cordial e interessado e o valor pedido como cachê era bem mais coerente e acessível para nós. Quando ficou tudo acertado, o Bochecha me pediu um "demo" da "tal" música eletroacústica.
A conversa acabou logo. Segundo o empresário, o Claudinho Bochecha não gostou, ou ficou amedrontado.
Finalmente, fizemos o quinto espetáculo com uma dupla caipira.

Devo salientar que todas as músicas, com exceção daquela do bumba-meu-boi, eram de minha autoria. Tanto as eletroacústicas quanto as "populares" : choros, canções, coco, embolada, cantoria etc.

Modestia à parte, deu tudo muito certo, com resultado muito bom. O público que assistiu era eclético e gostou. Dos nossos colegas membros da Anppom que assistiram, lembro-me de apenas três nomes: Carlos Kater, Isabel Montandom e Ricardo Tacuchian.

Creio que o acerto foi conseqüência de dois fatores que não estiveram presentes nessa experiência do Sesc Pinheiros, com o diálogo Schoenberg & Funk:
1- O predomínio da simultaneidade de linguagens, em lugar da alternância;
2- A utilização de obras do mesmo autor.

Abraço,
Jorge Antunes

PS. A seguir, para que se divirtam um pouco, reproduzo as redondilhas que escrevi para os cantadores do quinto espetáculo.

CANTORIAS de Jorge Antunes para o Speculum Brasilis
para serem cantadas por Chico de Assis e João Santana

O dotô da Academia
sabe tudo de montão.
Ele faz até transplante
de rim e de coração.
Só não quero que ele cante:
vai tirá meu ganha-pão.

Mas tem coisa que o dotô
não tem a menor noção.
É saber que quem conhece
é o cabôco do sertão,
que sabe de muita prece
pra curá todo cristão.

Da cozinheria na roça
vou contar segredo dela:
pro arroz não se queimar
não ficar como a barrela
é uma cruz você riscar
bem no fundo da panela.

Quando tem dois cantadô
nossa voz a gente dobra.
Na noite escura e sombria
o cuidado se redobra:
ai daquele que assobia
pois está chamando cobra.

O dotô não sabe tudo,
acho que nem sabe rima.
Se a ferida de sarar
pó e banha não anima,
de manhã, ao levantar,
cospe três vezes em cima.

O mestre do contraponto
sabe até fazê uma fuga.
Mas aponta uma estrela
que no infinito madruga,
pois não sabe que ao vê-la
vem no dedo uma verruga.

O maestro que dá aula
lá na Universidade
sabe tudo de Chopén,
sabe de tonalidade,
dizem que sabe também
fazer música que agrade.

O meu filho Joãozinho
e minha sobrinha Mônica
estudaram com um mestre
que tinha doença crônica:
só compunha Sinfonia
misturada em eletrônica.

Muitas coisas eles ouvem
desde Bach até Beethoven.
Gravam sons que vêm do céu,
fazem musca com o mause,
ouvem Bruckner, Ravel,
até mesmo Stockrrause.

Eles ligam as orelha
num sonzinho muito doido.
Fazem zumbidos de abelha
som de pato, som de cuco,
tocam o que dá na telha,
fazem um som bem maluco.


Nós aqui fora do campus
só fazemos som singelo.
Não entendo o que houve,
eu me espanto, eu me gelo:
o maestro que nos ouve
diz que nosso som é belo.

Nosso canto é matuto
mas não chega ao fracasso.
Eu insisto e eu luto
pra mostrar tudo que faço,
e tô sempre muito puto
quando não encontro espaço.

Também diz a mesma coisa
o maestro sabichão.
Só de ópera tem quatro
com muita bela canção,
não encontra um teatro
pra mostrar a produção.

Muita obra tem o home,
sinfonias e quartetos.
Ele escreve em qualquer data
acordes muito bem feitos.
Ele tem até cantata,
muitos trios e duetos

Com apoio dos ricaço
por aí tem muita droga.
O que é bom não tem espaço,
não tem grana, não tem folga.
(tirando o chapéu)
O chapéu que agora eu passo
vai todo pra óp'ra Olga.

Se esse trabalho do mestre
tá um pouco esquecido,
ele tá que nem a gente,
sem apoio, bem fudido.
Se juntá a gente sente
vai ficar fortalecido.

Música que tem ciência,
tem beleza, tem poema,
que tem alma, tem essência,
que tem som um tanto novo,
pode fundir sem problema
com o canto do meu povo.

O saber da Academia
não pode estacionar.
Toda aquela teoria
ganha muito se juntar
a busca do dia-a-dia
com o saber popular.

O cantar do erudito
tá perdido no mercado.
É que nem canto na feira
que em busca de um trocado
anda sem eira nem beira
e sai sempre machucado.

Pega a voz do cantador
e transforma em alquimia.
Mete no computador
transformando a noite em dia.
É liquidificador
que enlouquece a melodia.

Eletrônica e canto
vão juntando energia.
Ri o jovem, chora a dona,
ri o home, chora a moça.
É fusão que emociona,
é união que faz a força.



José Luiz Martinez wrote:

> Caros colegas,
>
> Eu e o Fernando Iazzetta assistimos o espetáculo "Luar Trovado", baseado em
> "Pierrot Lunaire" de Schoenberg, sábado passado. O espetáculo aconteceu no
> teatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo. A direção cênica é assinada por
> Gerald Thomas e a direção musical é de Lívio Tratenberg.
>
> Embora eu e o Fernando não tenhamos nos encontrado no teatro, concordamos
> sobre o resultado. Repasso agora para as listas onde foi realizada (alguns
> dias antes do espetáculo) uma proveitosa discussão sobre Pierrot, Deise
> Tigrona, bizarrices, etc. as mensagens trocadas hoje entre eu, o Fernando e
> mais alguns colegas.
>
> Confesso que toda a nossa discussão na lista da Anppom e na Musikeion foi me
> instigando. Eu estava curioso para ver o "Luar Trovado". Afinal, o
> espetáculo portava boas promessas como a obra de Schoenberg com tradução de
> Augusto de Campos e diversos convidados que no mínimo garantiriam algo de
> bizarro. A partitura de "Pierrot Lunaire" foi executada corretamente. Mas,
> infelizmente, o espetáculo foi decepcionante. Valeu apenas pela iniciativa.
> Que outras experiências venham à luz e que o Sesc possa continuar bancando
> algo fundamental em ópera contemporânea. Criar e colocar em cena para que o
> público veja e julgue.
>
> Gostaria de advertir que concordamos em não omitir ou utilizar quaisquer
> eufemismos para os títulos dos funks cantados pela Deise Tigrona. Assim,
> aqueles que possivelmente se ofenderiam com palavras de baixo calão, por
> favor, desconsiderem essa mensagem e não leiam o que segue.
>
> Cordialmente,
> Martinez
>
> --
> Prof. Dr. José Luiz Martinez
> Departamento de Linguagens do Corpo
> Faculdade de Comunicação e Filosofia - PUC-SP
>
> Rede Interdisciplinar de Semiótica da Música
> http://www.pucsp.br/pos/cos/rism
>
> Musikeion - fórum sobre signficação musical
> http://listas.pucsp.br/mailman/listinfo/musikeion
> http://listas.pucsp.br/pipermail/musikeion/
>
> **********************************************************************
>
> Caro Fernando,
>
> Eu também estava lá no sábado, pena que a gente não se encontrou na saída
> para bebericar uma crítica ferina ao espetáculo, chamado de ópera. Eu
> pretendia escrever alguma coisa na lista da Anppom e na Musikeion. Afinal,
> depois de tanta conversa, nossos colegas devem estar curiosos. Você
> permitiria que eu citasse sua mensagem e postasse na lista da Anppom? Será
> que teremos que usar eufemismos para o funk "a porra da boceta é minha"?
>
> Eu concordo com tudo o que você disse. E acrescentaria o desnível entre as
> composições do Lívio Tratenberg e as peças do "Pierrot" de Schoenberg. É uma
> responsabiliade muito grande você compor peças para serem executadas ao lado
> de um clássico do séc. XX. Na minha opinião, as do Lívio eram todas muito
> fracas, inclusive as eletroacústicas. Outra coisa difícil de aguentar eram
> as "interações" entre a Lucila Tratenberg e a Adélia Issa. A coisa foi
> colocada como um conflito entre as duas cantoras, inclusive resvalando sobre
> uma politicamente incorreta briga entre a gorda e a magra (respectivamente
> Adélia e Lucila). Musicalmente era fraquíssimo. Num ponto da cena entrava um
> clarone e uma tuba, mas os dois músicos passavam sem nenhuma interação
> cênica com as duas. Se é para fazer uma cena grotesca e politicamente
> incorreta, que se faça direito!
>
> O diálogo ficou mesmo entre a Deise e os músicos fazendo o "Pierrot". O
> público aplaudia fortemente a funqueira. Poderia ter sido construído por aí.
> Mas era uma simples alternância. Os músicos e a Adélia ficavam no escuro e
> entrava a Deise. A Deise saia e voltavam os músicos. Seria melhor do que
> toda a cenografia obvia e efeitos desperdiçados. Até uma encenação de
> algumas das canções de Schoenberg teria sido melhor. "Lavadeira Lívida", por
> exemplo, poderia ter uma cena correspondente com a bailarina. Qualquer coisa
> seria melhor do que aquele casal de atores fazendo piquenique na lua, ou um
> fotógrafo que entrava em cena disparando o flash, personagens completamente
> inexpressivos e dispensáveis. Ainda que óbvio por outro lado, eu preferiria
> que o cenário fosse uma favela. Seria mais instigante do que o pastiche
> lunar.
>
> Acho que a Elke Maravilha (dublando horrivelmente sua voz gravada, num texto
> fraco e mal interpretado) representa bem a idéia central da direção cênica
> de colocar alguns ícones da mídia, mais pelo nome do que pela atuação, para
> compor algo muito bizarro, mas que no fim implodiu pela inconsistência
> musical e cênica.
>
> Para mim a amplificação da voz da Adélia tinha um problema técnico. Não sei
> se você (Fernando) concorda. Mas estava tudo bem enquanto ela cantava em pp
> ou mf, mas quando ela ia para o f e ff a amplificação fazia a voz da Adélia
> ficar insuportavelmente forte, encobrindo completamente os instrumentos.
> Faltou aí um compressor?
>
> A história do Tom Zé era o que faltava para acabar com toda a "ópera".
> Talvez o G. Thomas tenha percebido ao final que nada daquilo parava de pé e
> resolveu transformar tudo em programa de auditório. Ao menos disfarçou a
> reação da platéia...
>
> Abraços,
> Martinez
>
> On 10/06/2007 02:50, "Fernando Iazzetta" <iazzetta em usp.br> wrote:
>
> > Meus caros,
> >
> > Foi alarme falso. Me dei ao trabalho de ir conferir o pierrot com funk. A
> > deise tigrona funkeou com "a buceta é minha, eu dou pra quem eu quiser", a
> > Elke maravilha fez um "dueto" com a lucilia tragtemberg e a adelia issa
> > cantou direitinho umas partes do pierrot schoenberguiano. Tudo normal.
> > Fizeram boa música até.
> >
> > O bizarro ficou mesmo por conta do Gerald Thomas e põe bizarro nisso. O
> > espetáculo é horroroso, dos cenários à direção de cena, parecia trabalho de
> > estudantes de artes cênicas que ainda não entenderam como se juntam idéias e
> > realização.
> >
> > Para completar no finalzinho da encenação o G Thomas entrou no palco e falou
> > que no Brasil tem um cara mais fantástico e radical que Schoenberg, e chamou
> > o Tom Zé que levantou da primeira fila da platéia e fez um discurso
> > gaguejado em que misturou assuntos como "o cromatismo de Mahler"  com a
> > buceta da tigrona e por aí vai... De repente chamaram o Danilo Miranda
> > (manda-chuva do SESC), depois o cara que fez a cenografia, depois a deise
> > tigrona com a Elke, todo mundo se cumprimentou palco (tudo bem, os músicos
> > ficaram num canto sem saber o que fazer). Quando a coisa começou a sair de
> > controle o G Thomas pediu para baixar a cortina, e... acabou!
> >
> > Tão bizarro que muita gente não sabia se era pra bater palma ou se a "coisa"
> > ia recomeçar depois de um intervalo.
> >
> >
> > Abraços, fernando
> >
> >
>
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