[ANPPOM-Lista] Fotógrafo francês traça a ‘geografia noturna’ dos bailes funk no Rio

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Dom Nov 11 13:23:47 BRST 2012


Luciano,

(Não uso o "caro" porque acho que essas formalidades, significativas ou
não, tendem a impregnar de cerimônia a discussão, que prefiro direta e sem
perífrases).


> Explique o absurdo então, quais são essas relações? Seria mais útil, ao
> invés de afirmar um suposto desconhecimento que essa frase supostamente
> mostra. Onde está a sua própria exigência de discutir com critérios
> científicos se você mesmo simplesmente rechaça, censura e condena? Onde
> está o argumento? Eu poderia discutir sua afirmação solta de que o Estado
> realmente representa a classe dominante (principalmente no Brasil de alguns
> anos), mas nem por isso me autorizo a desconsiderar o seu conhecimento.
> Porque você se autoriza a taxar o meu de irrelevante?
>
>
O "irrelevante" se aplicava ao argumento *ad hominem*. A consideração é
absurda (hipérbole) na medida em que constitui uma generalização
avassaladora, que não leva em conta os fatos e supõe que a música popular
seja alienada caso não expresse o engajamento dos Chico, Milton, Caetano em
suas catarses de classe (suponho, se me permite). Por outro lado, eu
concordaria se você tivesse dito que determinado tipo de funk foi, até
recentemente, uma licença dada no interesse da manutenção de uma
expoliação.

Não é possível falar aqui do funk carioca genericamente, porque mesmo no
grupo social ao qual o associamos, há divergências a seu respeito. Elas vão
da rejeição à aceitação como um modo de vida, uma identidade, e passam pela
aceitação seletiva de um funk "do bem" contraposto a um "funk do mal"
(ideia cara à mídia), pela nostalgia de um funk de raiz (o das duplas dos
anos 1990), ideia cara às gerações mais antigas, pelo silêncio tácito
acerca do Proibidão, útil aos políticos em campanha, para não falar da
recusa estratégica de determinados aspectos em determinadas situações a fim
de tornar o produto palatável quando a coisa em si seria pura e
simplesmente deletada. Afora isso, há a questão dos sub-gêneros, cujas
problemáticas, nesse aspecto, são distintas. As modalidades que me
interessam são, sobretudo, duas: o Proibidão e a Putaria.

Não vou entrar aqui numa discussão aprofundada das relações entre o funk
carioca e a classe dominante, ou, mais especificamente, o grande capital
inter ou transnacional. Existe uma literatura sobre o assunto, que não foi
esgotado. De fato, tomar o Estado pela classe dominante é também um
generalização grosseira, que não tenho como justificar agora. Para encurtar
a discussão, limito-me a explicar de que modo o Proibidão foi licença dada.

Como se torna a cada dia mais evidente, o comércio de substâncias ilícitas
depende da cooperação de representantes do Estado, nos três poderes, e dos
grandes interesses financeiros. Ele movimenta capitais enormes, somando-se
cocaína e armas, que seriam drasticamente reduzidos se  o comércio fosse
legalizado. As políticas de segurança pública e os discursos presidenciais
fornecem indicações claras do que a erradicação desse comércio não
interesse aos chefes de executivo dos três últimos mandatos presidenciais.
As UPPs não eliminaram nem têm o objetivo de eliminar o tráfico. Elas
existem em função dos grandes capitais transnacionais que afluem ao Rio. Na
medida em que uma das facções (precisamente aquela na qual floresce o
Proibidão) é combatida, outras se fortalecem, sem certo discurso combativo,
em alianças com a polícia, ou substituídas pelas milícias. É nesse sentido
que o Proibidão foi, até recentemente, licença dada pela classe dominante,
que simulou combatê-lo da mesma forma como simula combater o tráfico.






>
>
>
>
> "Mas trabalhar em projetos sociais - como é o meu caso - talvez também
> ajude a alimentar um olhar mais aproximado sobre a representatividade que
> os moradores de comunidades de periferia efetivamente conferem a esse
> gênero musical.
>
>
> É evidente que o funk carioca não é o representante de comunidades e
> favelas. Tampouco se propõe sê-lo. Quem se apresenta como tal são os MCs do
> hip-hop"
>
> Ok, grato. Mas a defesa do funk enquanto gênero legítimo de
> representatividade social é coisa que eu tenho ouvido por aí, especialmente
> entre a mídia de classe média. Até Michel Teló tem sido vendido como
> genuíno representante da música brasileira. Se você não concorda com isso,
> me desculpe, estamos no mesmo lado em algumas questões, pelo menos.
>
>
Como creio já ter dito, não me coloco facilmente no papel de julgar a
legitimidade de uma manifestação musical, e se o fizesse, escolheria de
preferência as manifestações de minha própria classe, de meu próprio grupo,
e.g. as músicas acadêmicas. É evidente que o funk carioca é uma
manifestação musical em interação com culturas, socidades, políticas,
ideologias. Através dessa manifestação, desenvolveu-se um *know how* (uma
técnica, uma arte). Ela movimenta um capital enorme e local. Se vc me
desculpa a autocitação, no interesse da brevidade:

According to FGV, in 2008 the earnings of the 164 MCs, 90 DJs, 67
*equipes*and 248 peddlers whose income depended on the
> *bailes* added up to well over R$17,000,000 in the city o Rio alone (FGV
> Opinião 2008, 79).
>

Aparte o interesse financeiro, existe o interesse musical (desculpe as
assonâncias, não tenho tempo para me corrigir). Do ponto de vista do *ethos*,
não há nada comparável aos melhores Proibidões na música brasileira. Que
para muitos seja desejável que não houvesse, é manifestação de interesse de
classe. Do ponto de vista acadêmico, os problemas que ele propõe à
musicologia são de natureza a exigir o avanço da disciplina. Do ponto de
vista das subjetividades envolvidas, ele fornece uma forma de
reorganização. Trata-se de cultura no sentido mais fundamental do termo,
sobre a qual talvez dissesse Walter Benjamin:


> A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de
> vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem
> as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais
> não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se
> manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da
> astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos.
>

O fato de que essa confiança, essa coragem, esse humor, essa astúcia, e
essa firmeza tenham-se desenvolvido sob o amparo de uma associação de
comerciantes do varejo de substâncias ilícitas é talvez, das denúncias
contra o sistema, o Estado, o regime ou o governo, a mais eloquente.



>
>
>
>  "Não entendo como a crítica feita a partir desses dois pontos
> (estratificação de estruturas de poder e apologia a uma cultura isolada,
> uma reforçando a outra) seja a de uma "mentalidade colonizada", até porque
> não aleguei em momento nenhum, comparação com qualquer manifestação
> cultural de "elite".
>
>
> "Em primeiro lugar, o termo "apologia", extraído de uma legislação
> inconstitucional, já desqualifica seu texto, e mostra exatamente o lugar de
> onde vc fala. Em segundo, falar de "estratificação de estruturas de poder"
> em relação a subgêneros como o Proibidão ou a Putaria é desconhecê-los
> enquanto linguagem musical."
>
> Essa foi dura de ler. Antes de mais nada, apologia é "louvor, elogio"
> (dicionário Unesp, 2004). Agora me explique: como é que o uso de uma
> palavra pode desqualificar meu texto? Como é que a associação desta palavra
> com uma legislação inconstitucional (aliás, que legislação é essa, a qual
> todos deveríamos associar a palavra "apologia"???) pode levar a
> desqualificação de meu texto?! Que tipo de crítica é essa? Será que o
> Silvio Ferraz, em sua argumentação violenta, tem razão ao te associar a um
> dogmatismo radical? Quero crer que não, mas você realmente fala sério ao
> pontuar o lugar social de minha fala a partir do uso de uma palavra? E,
> pior ainda, me desqualificar como fez, a partir da conclusão (falsa, porque
> eu é que sei de que classe social eu faço parte, posso te mandar meu
> hollerite) sobre o lugar social a que você acha que pertenço?
>
>
Usei a expressão "lugar de onde se fala" no sentido que lhe atribui
Barthes, retomando Lacan. Não me refiro a classe social. E vc não usou o
termo apologia uma, mas inúmeras vezes. As legislação (inconstitucional)
contra a "apologia ao crime" é da Alerj, que, entre 1999 e 2008, gastou boa
parte de seu tempo com ela. É digno de nota que a mais draconiana dessas
leis, que joga os bailes nas mãos das polícias, foi proposta por um
deputado hoje cassado por corrupção. Eis a lista:

Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. 2009. "Lei 5544, de 22
de setembro". Rio de Janeiro: Alerj. <
alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/e10aa060221680ff8325763c005ac9dc?OpenDocument>.


------. 2009. "Lei 5543, de 22 de setembro". Rio de Janeiro: Alerj. <
alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/78ae3b67ef30f23a8325763a00621702?OpenDocument>.


------. 2008. "Lei 5265, de 18 de junho". Rio de Janeiro: Alerj. <
alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/ede57aa198e6e98d8325746d00606539?OpenDocument
>.

 ------. 2003. "Lei 4264, de 30 de dezembro". Rio de Janeiro: Alerj, <
alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/bc008ecb13dcfc6e03256827006dbbf5/d61010f875507ee383256e14004fe90f?OpenDocument
>.

------. 2000. "Lei 3410, de 29 de maio". Rio de Janeiro: Alerj. <
alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/756831a75d413aa4032568ef005562d8?OpenDocument
>.


Sobre a inconstitucionalidade dessa legislação, veja a Constituição de 1988:

Assembleia Nacional Constituinte. 1988. *Constituição da República
Federativa do Brasil*. Brasília: Senado Federal, <
www.senado.gov.br/legislacao/const>.

Em particular, examine:

Título II
<http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_5_.shtm>
-  Dos Direitos e Garantias Fundamentais ( art.
5<http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_5_.shtm>a
art.
17<http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_17_.shtm>)

São, de acordo com o *Dicionário jurídico* de Maria Helena Diniz (Saraiva,
2008, 4 vv), cláusulas pétreas: não podem sofrer emenda e tornam
inoperantes quaisquer leis que entrem em conflito com elas ou as limitem.
Isto se aplica a todos os direitos e garantias individuais, entre eles: "é
livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença"; e "é livre o
exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as
qualificações profissionais que a lei estabelecer". Para modificá-las ou
removê-las seria necessária uma revolução.

Se não confiar em mim (recomendo que não o faça), assita ainda a esta
entrevista do jurista Nilo Batista:

www.youtube.com/watch?v=xYjACv3LQXc

Ou a esta, da socióloga Vera Malagutti Batista:

www.youtube.com/watch?v=LcAe_iGvhc0

Nilo prepara um livro sobre o assunto.



>
>
>
>  "Sequer falei da relação de belo-não belo. Esse preconceito,
> provavelmente, está na cabeça de quem leu".
>
>
> Falou sim: falou de "estetização" da "expressão social e cultural de uma
> classe oprimida", como se, por ser de uma classe oprimida, não fosse arte,
> e necessitasse ser "estetizada" por um estrangeiro pervertido.
>
>
> Continuo dizendo que não abordei a questão de distinção entre belo e
> não-belo para discutir o funk ou as fotos: a esteticização da expressão
> social que estou criticando é a que está sendo feita através da produção
> artística (muito bem realizada, de fato) do seu amigo fotógrafo. Eu NUNCA
> PREGUEI QUE UMA CLASSE OPRIMIDA NÃO TEM PRODUÇÃO ARTÍSTICA E NÃO CONCORDO
> COM ISSO. O que você está fazendo é tratar minha manifestação escrita (por
> um acadêmico sim, para um grupo de acadêmicos nos quais você está incluído,
> esse é o SEU lugar social também) com preconceito. E não sou eu quem
> acredita ser necessário um estrangeiro (a palavra "pervertido" é sua e do
> Silvio...) para esteticizar produção artística para que ela seja
> considerada bela... Pra mim, se uma arte está sendo esteticizada, já tem
> alguma coisa errada com o lugar social que ela ocupa...
>
>
Tem razão, Vincent de fato mostra o bonito e o erótico. Ele tem fotos do
terrível também, mas não as mostra para não colocar em risco aqueles a quem
retrata. São fotos históricas. Vincent é o único a ter fotografado os
bailes da Chatuba, o Maracanã do Funk. Não é o lugar que ele ocupa que está
errado, mas o da opinião pública, tão bem representada e doutorada aqui.
Quem dos distintos acusadores se deu ao trabalho de subir qualquer morro
para saber do que está falando? Dos da classe de Vincent, poucos
brasileiros, entre os quais Denise Garcia, para filmar *Sou feia mas tô na
moda*.


>
>
>
>
>  Imaginei que você o conheceria, por isso o mencionei. Mas eu não
> apresentei uma súmula genérica, nem propus discutir a opinião dele. Citei
> um cara que está envolvido com a questão da arte de classes oprimidas (seu
> esclarecimento acima desloca a questão, eu reconheço). Citei uma declaração
> sua que eu testemunhei. Mas se o fato de eu estar discutindo questões no
> meio acadêmico não basta para que você sequer respeite minha opinião, não
> vejo porque iria respeitar minha menção.
>
>

Não duvido do que vc diz. Mas não posso analisar a fala de Ferréz a partir
de sua súmula. Eu conheço bem a hostilidade do hip-hop em relação ao funk.
Mas há exceções. A primeira envolve o Racionais com o MC Felipe Boladão,
provavelmente o mais brilhante dos MCs do funk paulista, executado pela
polícia.

http://www.youtube.com/watch?v=l9pLo1MgaPg

A segunda combina o MC Mag (do hip-hop) e o MC Smith, astro máximo do
proibidão no período compreendido entre a primeira (2007) e a segunda
(2010) invasões do Complexo do Alemão. Letra, música e produção são de Mag.
O clipe foi realizado no dia seguinte à libertação dos MCs Frank, Max,
Tikão, Dido e Smith, ilegalmente detidos em 15 de dezembro de 2010.

http://www.youtube.com/watch?v=qVqxSF3R9K8




>
>
>   Essa avaliação é digna do AI5. A expressão se reporta sim, a um processo
> de engano, mas não efetuado por essa ou aquela pessoa. Não é "esse" francês
> que está sendo enganado, é a apreciação das fotos, muito mais pelo processo
> de esteticização (agora sim) de uma cultura discutível enquanto tal (pois
> toda a forma de cultura é discutível enquanto tal, essa é uma das coisas
> que a define como cultura...). Esse processo independe até do autor das
> fotos. Trata-se de um movimento ideoógico, que pode estar ou não consciente
> na cabeça de quem o propaga. Reafirmo que no meu texto não há crítica a
> pessoa nenhuma. São tendências de percepções que estou levantando e que
> gostaria que fossem discutidas. Continuo perguntando onde está o parecer
> "ad hominem". Talvez a sua amizade revelada agora possa ter exacerbado sua
> suscetibilidade e isso é compreensível. Peço desculpas se ofendi de
> qualquer maneira a você ou a seu grupo de amigos. As fotos são ótimas. Mas
> os pontos continuam merecendo discussão, até por que, estamos em uma
> comunidade de músicos...
>
>

Digno do AI-5 é a situação que reportei acima, que vc não percebe e diante
da qual não se indigna. Usei um argumento de interpretação de texto, mais
nada. Minha amizade pelo Vincent não impede que eu entenda o que se critica
no trabalho dele. Apenas, tenho a certeza de que ele está fazendo algo
positivo pelas pessoas que retrata. E se vc me provar que não, ainda assim,
ele está fazendo alguma coisa diante de uma situação extrema. Conheço
pouquíssimos dispostos a arriscar seu prestígio na afronta do senso comum
da maioria silenciosa e omissa, conquanto vocífera.



>
>
>
> Como acabo de dizer, manifestei uma opinião e estou realmente aberto a
> argumentos que enriqueçam essa opinião, desde que haja discussão dos pontos
> levantados.
>
>
> Ei-la.
>
> Mais ou menos, né? Vou pensar melhor na questão dos lugares sociais que o
> funk se pretende fazer parte. Enriqueceria minha experiência conhecer
> melhor o seu trabalho. Mas insisto no cuidado em atacar e censurar. A sua
> reação foi violenta e continua sendo. Se o Silvio se expôs ao ridículo
> segundo o seu ponto de vista, você está se expondo como um autoritário raso
> que sequer avalia quais questões estão sendo levantadas a partir de
> comentários a cerca de processos sociais.
>
>

Lamento não o ter satisfeito. Boa parte de meus textos sobre proibidão está
aqui.

www.proibidao.org

No interesse da parte que falta, sou forçado a dar a discussão por
encerrada.

Violência intelectual é parte, como dizia Paulo Francis, "do make-up de
minha desagradável personalidade".

Abraço,
cvp


>
> Luciano
>
> -----Anexo incorporado-----
>
> ________________________________________________
> Lista de discussões ANPPOM
> http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
> ________________________________________________
>
>


-- 
carlos palombini
www.researcherid.com/rid/F-7345-2011
-------------- Próxima Parte ----------
Um anexo em HTML foi limpo...
URL: <http://www.listas.unicamp.br/pipermail/anppom-l/attachments/20121111/5f396c36/attachment.html>


Mais detalhes sobre a lista de discussão Anppom-L