[ANPPOM-Lista] Boa matéria para refletir sobre nosso sistema de pesquisa

mcamara em usp.br mcamara em usp.br
Ter Jul 1 10:21:35 BRT 2014


Caros colegas, 

Ao contrário do que o douto colega Carlos Palombini diz, creio que o artigo de Renato Souza (e não do Nassif) é oportuno e levanta questões importantes. Tenho sido testemunha de ações que (pré) julgam a produção dos colegas em vias de recredenciamento em programas de pós que são o mais puro reflexo dessa normose acadêmica. Em outras palavras, não é porque todo mundo faz, ou porque todos pensam assim ou assado, que temos que nos limitar a repetir o procedimento que garante Qualis ou seja qual for outro índice, em nome de uma "excelência acadêmica" que só existe no idealismo de alguns. Os caminhos e métodos são diversos e a pesquisa desinteressada traz inúmeros resultados, como mostra o artigo no link abaixo, sobre " Valorizar estudos avançados é superar a tendência imediatista das universidades de saber cada vez mais sobre cada vez menos", que diz: " Em 1930, Princeton reuniu Einstein e outros sábios em nome da ausência de barreiras disciplinares e da busca desinteressada do saber, sem medo da demora – e do eventual fracasso". Disponível em < http://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/valorizar-estudos-avancados-e-superar-a-tendencia-imediatista-das-universidades-de-saber-cada-vez-mais-sobre-cada-vez-menos> 

A meu ver, é mais que pertinente no campo da música essa discussão e o que precisa ser pensado é o significado da chamada "avaliação por pares". É censura? É boicote? Ou simplesmente um trabalho colaborativo em que temos a oportunidade de trocar ideias com os colegas e nos aperfeiçoarmos? 

Quanto às revoluções, Foucault, como sempre, é original e vê coisas que a normose às vezes nos impede. Instrutivo também é o pensamento de Hobsbawm sobre "a era das revoluções", e, para aproximar a discussão do campo musical, um artigo visionário de Bartók, sobre "o problema da música nova", publicado em 1920, em que ele já via a coisa de um jeito bem diferente do que se acostumou a pensar na academia. Envio anexo um scan do texto na versão francesa, editada por Autexier, que é a única que tenho. Sei que na ECA tem em inglês. 

Abraços, 

Marcos 

----- Mensagem original -----

> De: "Carlos Palombini" <cpalombini em gmail.com>
> Para: anppom-l em iar.unicamp.br
> Enviadas: Segunda-feira, 30 de Junho de 2014 21:46:35
> Assunto: Re: [ANPPOM-Lista] Boa matéria para refletir sobre nosso
> sistema de pesquisa

> Mario,

> Obrigado pela postagem!

> Eu li o texto do Nassif há poucos dias, e, como você o fez, pensei em
> postá-lo aqui, mas não o fiz porque cheguei à conclusão que ele não
> acrescenta muito ao debate e, sobretudo, não diz respeito ao
> problema como ele se apresenta na área de música. Assim, envio como
> resposta este texto de Foucault, "Inútil revoltar-se?"

> Abraço,

> Carlos

> "Inútil revoltar-se?"

> > Estamos preparados para morrer aos milhares com o propósito de
> > derrubar o xá”, diziam os iranianos ano passado. E o Aiatolá
> > recentemente: “Deixe o Irã sangrar; assim a revolução será forte.”
> 
> > Há um estranho eco entre essas frases que parecem conectadas. O
> > horror da segunda condena a intoxicação da primeira?
> 
> > As revoltas pertencem à história. Mas, em certo sentido, escapam
> > dela. O impulso graças ao qual um simples indivíduo, um grupo, uma
> > minoria ou todo um povo diz: “Não mais obedecerei” e lança o risco
> > de suas vidas na face de uma autoridade que considera injusta me
> > parece algo irredutível. Uma vez que nenhuma autoridade é capaz de
> > fazê-lo totalmente impossível: Varsóvia sempre terá seu gueto em
> > revolta e seus esgotos cheios de rebeldes. E porque o homem que se
> > rebela é finalmente inexplicável, produz-se, para o homem apto a,
> > “realmente”, preferir o risco de morte à certeza de ter que
> > obedecer, uma torção violenta que interrompe o fluxo da história e
> > suas longas cadeias de razões.
> 
> > Todas as formas de liberdade estabelecida ou demandada, todos os
> > direitos que se defende, mesmo aqueles que dizem respeito às coisas
> > aparentemente menos importantes, sem dúvida tem aqui um ponto de
> > sustentação último, mais sólido e próximo da experiência que os
> > “direitos naturais”. Se as sociedades persistem e vivem, isto é, se
> > os poderes existentes não são “completamente absolutos”, é porque,
> > para aquém de qualquer submissão ou coerção e para além das ameaças
> > e das intimidações, existe a possibilidade daquele momento em que a
> > vida não pode mais ser comprada, quando não há nada que as
> > autoridades possam fazer e quando, enfrentando a forca e as
> > metralhadoras, as pessoas se revoltam.
> 
> > Porque estão, portanto, “fora da história” e na história, porque
> > todos fazem conta de sua vida e morte, compreende-se a razão de os
> > insurretos terem encontrado tão facilmente sua expressão e seu
> > drama
> > em formas religiosas. Promessas de outra vida, de renovação do
> > tempo, de antecipação do salvador ou do império dos últimos dias,
> > de
> > um reino de pura bondade – por séculos tudo isso constituiu, onde a
> > forma religiosa permitiu, não uma fantasia ideológica, mas a forma
> > mesma de se experienciar as revoltas.
> 
> > Então veio a era da “revolução”. Por duzentos anos, essa ideia
> > obscureceu a história, organizou nossa percepção do tempo e
> > polarizou as esperanças das pessoas. Constituiu um esforço homérico
> > para domesticar revoltas com uma história racional e controlável:
> > deu-lhes uma legitimidade, separando suas boas configurações das
> > más
> > e definindo as leis de seu desdobramento; fixou suas condições
> > prévias, objetivos e maneiras de chegar à consumação. Até um status
> > de revolucionário profissional foi definido. Repatriando, pois, a
> > revolta, as pessoas almejavam tornar sua verdade manifesta e
> > conduzi-la a seu verdadeiro fim. Uma promessa maravilhosa e
> > formidável. Alguns dirão que a revolta foi colonizada em
> > Realpolitik. Outros, que a dimensão de uma história racional foi
> > aberta para ela. Prefiro a pergunta ingênua e um tanto febricitante
> > que Max Horkheimer propôs certa feita: “Mas essa revolução é, de
> > fato, uma coisa desejável?”
> 
> > O enigma das revoltas. Para quem não olhou para as “razões
> > subjacentes” ao movimento no Irã, mas atinou no modo como ele foi
> > vivido, para quem tentou entender o que estava se passando nas
> > mentes daqueles homens e mulheres quando arriscaram suas vidas, uma
> > coisa foi notável. Eles inscreveram suas humilhações, seu ódio pelo
> > regime e sua resolução de derrubá-lo nos limites do céu e da terra,
> > numa história vislumbrada que era religiosa na mesma medida que era
> > política. Confrontaram os Phalavis, em uma luta na qual a vida de
> > todos estava em perigo, mas que era também uma questão de
> > sacrifícios milenares e de promessas. Destarte, as famosas
> > manifestações, que desempenharam um papel tão importante, podiam ao
> > mesmo tempo responder, de uma maneira efetiva, à ameaça do exército
> > (a ponto de paralisá-la), seguir o ritmo das cerimônias religiosas
> > e
> > apelar a um drama intemporal em que o poder secular é sempre
> > acusado. Essa espantosa superimposição produziu, em meados século
> > XX, um movimento forte o bastante para derrubar um regime
> > aparentemente bem armado, participando, simultaneamente, de velhos
> > sonhos que o Ocidente conhecera em tempos passados, quando as
> > pessoas se esforçavam por inscrever as figuras da espiritualidade
> > no
> > campo da política.
> 
> > Anos de censura e perseguição, uma classe política posta sob
> > tutela,
> > partidos declarados ilegais, grupos revolucionários dizimados: onde
> > senão na religião poder-se-ia encontrar suporte para a desordem, em
> > seguida para a rebelião, de uma população traumatizada pelo
> > “desenvolvimento”, pela “reforma”, pela “urbanização” e por todas
> > as
> > outras falhas do regime? Verdade. Mas, dever-se-ia ter esperado o
> > elemento religioso para mover-se rapidamente em favor de forças que
> > eram mais reais e de ideologias que eram menos “arcaicas”?
> > Indubitavelmente não, e por várias razões.
> 
> > Houve o rápido sucesso do movimento, confirmando-o na forma que
> > assumiu. Houve a solidez institucional de um clero cujo domínio
> > sobre a população era forte e cujas ambições políticas eram
> > vigorosas. Houve todo o contexto do movimento islâmico: com as
> > posições estratégicas que ocupa, a relevância econômica dos países
> > muçulmanos e sua força expansionista sobre dois continentes, é uma
> > realidade intensa e complexa, tudo em torno do Irã. Com o resultado
> > de que os conteúdos imaginários da revolta não se dissiparam na
> > plena luz do dia da revolução. Eles foram imediatamente transpostos
> > para um cenário político que parecia plenamente preparado para
> > recebê-los, mas que era na verdade de uma natureza inteiramente
> > diferente. Esse cenário comportava uma miscelânea dos mais
> > importantes e dos mais atrozes elementos: a formidável esperança
> > de,
> > uma vez mais, fazer do Islã uma grande civilização e formas de
> > virulenta xenofobia, desafios globais e rivalidades regionais.
> > Juntamente os problemas de imperialismos e a subjugação de
> > mulheres,
> > assim por diante.
> 
> > O movimento iraniano não se enquadrava nessa “lei” das revoluções
> > que
> > traz à luz, pelo menos assim parece, a tirania à espreita dentro de
> > si, sob o entusiasmo cego. O que consiste na parte mais interna e
> > mais intensamente experimentada do levante resultou diretamente em
> > um tabuleiro de xadrez político sobrecarregado. Mas esse contato
> > não
> > era uma identidade. A espiritualidade que tinha sentido para
> > aqueles
> > que se encaminhavam para a morte não tem medida comum com o governo
> > sangrento de um clero integrista. Os clérigos iranianos queriam
> > autenticar seu regime por intermédio das significações que a
> > revolta
> > possuía. As pessoas não pensam de modo muito diferente quando
> > desacreditam o fato do levante em virtude de haver hoje um governo
> > de mullahs. Em ambos os casos, há medo. Medo do que aconteceu no
> > Irã
> > no último outono, algo de que o mundo não produzia um exemplo há
> > muito tempo.
> 
> > Por isso, precisamente, a necessidade de entender o que é
> > irredutível
> > nesse movimento – e profundamente ameaçador para qualquer
> > despotismo, de ontem e de hoje.
> 
> > Decerto, não há vergonha em mudar de opinião; mas não há motivo
> > para
> > alguém dizer que o fez quando hoje se opõe às mãos decepadas, tendo
> > se oposto ontem às torturas da Savak.
> 
> > Ninguém tem o direito de dizer: “Revolte-se; a libertação final de
> > todos os homens depende disso.” Não estou de acordo, contudo, com
> > quem diz: “É inútil para você revoltar-se; sempre vai dar no
> > mesmo.”
> > Não se deve dar ordens àqueles que arriscam suas vidas diante de um
> > poder. Revoltar-se é ou não um direito? Deixemos a questão em
> > aberto. As pessoas se revoltam; isso é um fato. E é assim que a
> > subjetividade (não a dos grandes homens, mas a de qualquer um) é
> > trazida para dentro da história, conferindo-lhe vida. Um condenado
> > põe em perigo sua vida para protestar contra punições injustas; um
> > louco não pode mais suportar ser confinado e humilhado; uma pessoa
> > recusa o regime que a oprime. Isso não faz do primeiro inocente,
> > não
> > cura o segundo e não assegura à terceira o amanhã prometido.
> > Ademais, ninguém é obrigado a ajudá-los. Ninguém é obrigado a
> > declarar que essas vozes confusas cantam melhor do que as outras e
> > falam a verdade. É suficiente que elas existam e que tenham contra
> > si tudo que está determinado a silenciá-las até que haja um sentido
> > em ouvi-las e em prestar atenção ao que querem dizer. Uma questão
> > de
> > ética? Talvez. Uma questão de realidade, sem dúvida. Todos os
> > desencantos da história não alterarão a verdade: é por causa de
> > tais
> > vozes que o tempo dos seres humanos não tem a forma de uma
> > evolução,
> > mas sim, precisamente, de uma “história”.
> 
> > Isso é inseparável de outro princípio: o poder que um homem exerce
> > sobre outro é sempre perigoso. Não estou dizendo que o poder é, por
> > natureza, mau; estou dizendo que o poder, com seus mecanismos, é
> > infinito (o que não significa que ele é onipotente, muito pelo
> > contrário). As regras para limitá-lo nunca são suficientemente
> > severas; os princípios universais para desapossá-lo de todas as
> > ocasiões de que apropria nunca serão suficientemente rigorosos.
> > Contra o poder, deve-se, em um esforço incansável e interminável,
> > definir leis invioláveis e direitos irrestritos.
> 
> > Nos dias que correm, os intelectuais não dispõe de uma boa
> > “imprensa”. Acredito que posso empregar essa palavra em um sentido
> > bastante preciso. Não é o momento de dizer que alguém não é um
> > intelectual; além disso, eu só provocaria um sorriso. Sou um
> > intelectual. Se pedissem minha concepção do que faço, o
> > estrategista
> > sendo o homem que diz: “Que diferença faz determinada morte,
> > determinado choro ou determinada revolta, comparados à necessidade
> > geral, e, por outro lado, que diferença faz um princípio geral na
> > situação particular em que vivemos?”, bem, eu teria de dizer que é
> > indiferente para mim se o estrategista é um político, um
> > historiador, um revolucionário, um sequaz do xá ou do aiatolá;
> > minha
> > ética teórica é o oposto da deles. É “anti-estratégica”: ser
> > respeitoso quando uma singularidade se revolta, intransigente logo
> > que o poder violar o universal. Uma escolha simples, um trabalho
> > difícil: pois é preciso ao mesmo tempo olhar de perto, um pouco sob
> > a história, o que a fende e a agita, e se manter atento, um pouco
> > aquém da política, àquilo que incondicionalmente a limita. Afinal,
> > este é meu trabalho; não sou o primeiro nem o único a realizá-lo.
> > Mas é o que escolhi.
> 
> > Publicado no Le Monde em maio de 1979.
> 
> > Tradução ao português por Arlandson Matheus Oliveira, baseada na
> > tradução ao inglês de Robert Hurley et al. publicada no volume 3 de
> > Essential Works of Michel Foucault , editado por James D. Faubion.
> 
> 2014-06-29 12:55 GMT-03:00 Mario Marcial Jr. <
> mariomarcaljr em gmail.com > :

> > Achei interessante para reflexão e resolvi dividir!
> 

> > http://jornalggn.com.br/fora-pauta/normose-a-doenca-da-normalidade-no-mundo-academico
> 

> > Grande Abraço a todos!
> 
> > Mario Marcal Jr.
> 
> > ________________________________________________
> 
> > Lista de discussões ANPPOM
> 
> > http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
> 
> > ________________________________________________
> 

> --

> carlos palombini
> professor de musicologia ufmg
> professor colaborador ppgm-unirio
> orcid.org/0000-0002-4365-7673

> ________________________________________________
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> http://iar.unicamp.br/mailman/listinfo/anppom-l
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Prof. Dr. Marcos Câmara de Castro 
Departamento de Música/FFCLRP 
NAP - CIPEM Núcleo de Apoio à Pesquisa em Ciências da Performance em Música 
Universidade de São Paulo 
Campus de Ribeirão Preto (SP), BRASIL 
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