[ANPPOM-Lista] os párias educadores

Carlos Palombini cpalombini em gmail.com
Dom Maio 31 01:29:41 BRT 2015


(Péssima retórica, mas boa análise).

Os profissionais do ensino público federal devem deflagrar uma greve a
partir de amanhã, dia 28 de maio. Ao lado da intensa luta dos educadores
nos municípios e estados que se alastra diante da intransigência das
autoridades, a greve do ensino federal completa o cenário desta que,
segunda a presidente, deveria ser a “Pátria Educadora”.

Essa “Pátria Educadora”, como outras bravatas eleitorais (de que o peso da
crise não seria jogado sobre os ombros dos trabalhadores, de que o ajuste
não implicará em perda de direitos, etc.), se dissolve agora em pura
hipocrisia. A urgência e necessidade do ajuste imposto para salvar o
capital de sua própria crise, consome na fogueira da insanidade o corpo
febril do doente para salvar o vírus. Na sanha saneadora revelam-se as
verdadeiras intenções de classe que atingem diretamente aqueles
transformados em “párias educadores”. No moderno sistema de castas, os
*chátrias
*(governantes) contemporâneos condenam aqueles que vivem de seu trabalho ao
abismo social, alguns mais que intocáveis (*dalitss – abaixo dos cães*),
são invisíveis, só podem sair à noite e se tentam aparecer são encarcerados
até morrer de forme (entre nós conhecidos como “terceirizados”).

No que tange ao ensino público federal, no entanto, os efeitos do ajuste
fiscal, ainda que suficientes para justificar a reação grevista da
categoria, não explicam a dimensão do problema e, talvez, escondam o
essencial.

No ano de 2011 o ANDES-SN, percorreu o país alertando sobre o risco de
desmonte que sofria a carreira docente e os fundamentos da proposta do
governo que implicava em uma concepção de universidade que fere mortalmente
a autonomia universitária, o caráter público e gratuito do ensino público
federal e a qualidade do ensino. Durante mais de um ano o governo e,
principalmente, o MEC se fizeram de surdos, num espetáculo de arrogância e
desconsideração.

O resultado foi, em 2012, uma grande greve nacional exigindo que se
discutisse a carreira docente, a questão salarial e as condições de
trabalho. O governo e o então Ministro da Educação, o senhor Aloísio
Mercadante (talvez o mais incompetente dos últimos que por ali passaram),
apenas intensificaram a omissão, transformando o problema do Ensino Público
Federal num mero problema orçamentário, não à toa a negociação foi
deslocada para o Ministério do Planejamento e para as garras gélidas e
burocráticas da czarina do orçamento, a senhora Mirian Bechior.

Com o requinte de um desfecho no qual o governo assina um acordo com uma
entidade sindical fantasma (que dizia representar apenas cinco das 53 IFES)
e impõe uma carreira que desestrutura e precariza o trabalho docente,
parcela em três anos um suposto reajuste que acabou (como prevíamos)
ficando abaixo da inflação e nem sequer acena para a (já naquela ocasião)
gravíssima situação das condições de trabalho e infra-estrutura nas
universidades, precarizadas por uma expansão sem os recursos necessários.

A justificativa do governo, repetida como um mantra à época foi que diante
da possibilidade da crise o governo “priorizava a manutenção dos empregos
no setor privado”. Isso significa que o fundo público seria desviado na
forma de generosas contribuições à iniciativa privada na forma de subsídios
e isenções fiscais diante da vaga promessa de manter o nível de emprego.
Para aqueles que acreditam que o governo não cumpre suas promessas, vai aí
o desmentido cabal: a renúncia fiscal entre 2012 e 2014 cresceu 409%. O
gasto previsto na educação entre 2012 e 2014 variou de 86,9 bilhões para
94,2 bilhões, ou seja, algo próximo de 7,5%.

O quadro se agrava pelo fato de que desde abril de 2014 o ANDES-SN tenta
negociar com o MEC e encontra a mesma disposição. O secretário da SESU,
secretaria de ensino superior do MEC, Paulo Speller, nesta suposta
negociação em 23 de abril de 2014, chegou a assinar um termo de compromisso
no qual assumia que os pontos apresentados por nosso sindicato sobre a
carreira poderiam ser a base para começar uma negociação. Evidente que
isso, de acordo com o MECb (movimento de empurrar com a barriga),
implicaria numa longa discussão conceitual – o que na verdade quer dizer
basicamente “podemos conversar qualquer coisa desde que não implique em
impactos orçamentários!”.

Quando o ANDES-SN se encontra agora dia 22 de maio (um ano e um mês
depois), recebe a seguinte posição do senhor Luiz Claudio Costa, Secretário
Executivo e Ministro da Educação em exercício (o filósofo Renato Janine
Ribeiro estava no exterior): que não seria possível começar a negociação
pelos pontos acordados há mais de um ano atrás, pois o Secretário não
podia, apesar de representar o Ministério na reunião, assinar aquilo em
nome do Ministério (!!!???); que a área da educação seria afetada com um
corte de R$ 9 bilhões, mas que o governo pretende “consolidar a expansão
das universidades e institutos federais” mesmo assim; e, que a
possibilidade de greve gerou um “desconforto no MEC” porque estaríamos
diante de “um novo governo que acaba de assumir e, portanto, não se poderia
considerar que houve falta de negociação”.

Vejam a que ponto chega a cara de pau destes senhores. Depois de mais de um
ano sem negociação, suspendem os únicos pontos acordados e afirmam,
surpreendentemente, que se trata de um novo governo e que precisam de mais
tempo para estudar a pauta apresentada. O “desconforto” do MEC não deveria
se dar pelo fato que a categoria exerce seu direito constitucional de se
defender com todas as armas que dispõe, inclusive a greve, mas pelo fato de
que há doze anos e vários ministros uma crise sem precedentes se abate
sobre aquilo que eles deveriam administrar. Não por uma ou outra conjuntura
desfavorável, mas como resultado da linha que foi imposta de forma
autoritária e diante dos claros clamores da categoria que denunciava que o
resultado seria exatamente o que hoje vemos.

Já em 2012 o então burocrata de plantão, o Ministro Mercadante, se dizia
surpreendido pela greve, pois tudo ia bem nas universidades e institutos
federais e que vivíamos uma “crise de crescimento”, com o tempo tudo daria
certo. É neste sentido que temos que entender a afirmação aparentemente
paradoxal do ministro em exercício, segundo a qual serão cortados 9
bilhões, mas que ele espera “consolidar” a expansão. E de fato assim será,
pois a consolidação da expansão é a consagração do crescimento com
precarização de condições de trabalho, de salários e da carreia docente.

O que está por trás deste circo é que o governo segue acreditando em sua
formula mágica: apoiar o capital privado (afinal o senhor Levy Mãos de
Tesoura não disse que a função do Estado é criar as condições para que a
economia privada funcione?), para crescer a economia, aumentando desta
forma a arrecadação e aí, depois de desfalcar o fundo público pagando o
preço do parasitismo financeiro, o que sobrar, pouco a pouco, destinar para
as outras áreas secundárias (educação, saúde, saneamento, etc.). Desta
maneira o que o governo espera é que seu ajuste funcione, a economia volte
a crescer e tudo vai dar certo.

O que é preciso entender é que o retrato de hoje na educação brasileira não
é um problema de percurso no interior de um plano virtuoso. É o resultado
natural e esperado de tal plano supostamente virtuoso. No caso específico
do ensino público federal a meta do governo era um setor expandido que
gastasse a mesma coisa ou proporcionalmente menos para assim ser
considerado eficiente. Para tanto as instituições federais de ensino
deveriam ser criativas na captação de recursos, vendendo serviços, fazendo
parcerias com iniciativa privada, cortando gastos, isto é, aplicando as
verdades consagradas de uma gestão empresarial à esfera pública.

Uma das soluções geniais foi que, quanto ao pessoal, deve-se distinguir
atividades fins de atividades meios e estas últimas podem e devem ser
terceirizadas – afinal, para que serve mesmo numa instituição de ensino
atividades como limpeza, manutenção, segurança e outras destinadas às
castas inferiores dos intocáveis. Eis que um tempo depois as universidades
não podem começar suas aulas e outras atividades fins porque não funcionam
as atividades meio. Porque os corredores estão cheios de lixo, os prédios
caindo (e não é mera figura de linguagem), com casos de assalto, estupro e
outros no interior dos campi. Os trabalhadores terceirizados e precarizados
sem salários, em alguns casos há mais de cinco meses, sendo trocados de uma
para outra unidade, de uma para outra empresa, sem vale alimentação e
transporte, sem direitos.

O número de alunos mais que dobrou, mas o número de professores, entre
entradas e saídas, permanece na melhor das hipóteses o mesmo. Salas de aula
são transferidas para containers, numa justiça poética à intensa
mercantilização do ensino, e agora ameaçadas de ser despejadas destes por
falta de pagamento às empresas que oferecem tal precarização. Alunos sem
assistência estudantil, alojamentos, restaurantes, bibliotecas, com suas
bolsas já insuficientes sendo suspensas.

Mas não devemos ser tão duros em nossa análise. Afinal, este é um “governo
que está apenas começando”… ou serão mais de doze anos? Mas, são outras
pessoas, sai Paulo entra Jesualdo na SESU (Paulo deve ter sido mandado de
volta para a escola de burocratas porque por um momento leu um documento e
concordou com seus termos ao invés de nos enrolar como foi treinado para
fazer). Sai o sociólogo Haddad que vendeu um plano incrível no qual tudo
daria certo se nada desse errado e não ficou para ver o estrago, entra o
economista que não entende muito de economia e um pouco menos de educação,
que passou pela Ciência e Tecnologia (coisa que ele também não entende),
depois Cid o Breve que destruiu a educação estadual no Ceará, e agora o
filósofo hobbesiano emprenhado em olhar lá do Estado, que se localiza acima
da sociedade, a guerra de todos contra todos aqui em baixo.

O problema é que durante todo este tempo, aqui em baixo, filósofos,
economistas, sociólogos, engenheiros, cientistas, e muitas outras pessoas
das mais diferentes áreas da produção do conhecimento, da ciência, da
tecnologia, do ensino, da pesquisa, que escolheram o ensino público, têm de
sobreviver em uma carreira em que coexistem três situações previdenciárias
(você pode se aposentar com todo seu salário, com uma boa parte dele ou só
com o piso da previdência); professores doutores tendo que esperar três
anos de estágio probatório para serem reconhecidos como… professores
doutores; professores dos colégios de aplicação tendo que brigar para
provar que aquilo também é ensino, pesquisa e extensão e que têm também o
direito de se qualificar; gente andando de um lado para o outro com seus
livros e o séquito de alunos atrás porque vagam no deserto sem salas e sem
manjedoura onde parir seus messias, com bibliotecas que se assemelham mais
a museu de livros raros que local com exemplares em número suficiente para
consulta e estudo.

Agora já se fala em estender o sistema de OS para contratar professores nas
Universidades – sistema que tem sido tão útil na saúde, não é verdade?

E os senhores do ministério estão um pouco “desconfortáveis” com a
possibilidade de uma greve!? Faz sentido, pois a greve torna visível a
crise que eles querem jogar para debaixo do tapete. Pois que fiquem
desconfortáveis, quanto mais melhor, porque a chapa vai esquentar embaixo
deles.

Em defesa do ensino público, gratuito e de qualidade, em defesa da carreira
docente dos profissionais do ensino público federal, em defesa das
condições dignas de trabalho e estudo, em defesa da pauta dos técnicos
administrativos e dos estudantes, em defesa dos direitos dos trabalhadores
e contra a terceirização, contra o ajuste para salvar o capital e contra os
cortes na educação. Contra este carma não dá para esperar a reencarnação. É
greve.

***

*Mauro Iasi *é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ,
pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13
de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro *O dilema de
Hamlet: o ser e o não ser da consciência*
<http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/48#.Ul8Kh1Csh8E> (Boitempo,
2002) e colabora com os livros *Cidades rebeldes: Passe Livre e as
manifestações que tomaram as ruas do Brasil*
<http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/cidades-rebeldes> e *György
Lukács e a emancipação humana*
<http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/gy%C3%B6rgy-lukacs-e-a-emancipacao-humana>
(Boitempo,
2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o *Blog da
Boitempo *mensalmente,
às quartas.
http://goo.gl/LZQLKU

-- 
carlos palombini
professor de musicologia ufmg
professor colaborador ppgm-unirio
ufmg.academia.edu/CarlosPalombini <http://goo.gl/KMV98I>
www.researchgate.net/profile/Carlos_Palombini2
scholar.google.com.br/citations?user=YLmXN7AAAAAJ
-------------- Próxima Parte ----------
Um anexo em HTML foi limpo...
URL: <http://www.listas.unicamp.br/pipermail/anppom-l/attachments/20150531/6349bb01/attachment.html>


Mais detalhes sobre a lista de discussão Anppom-L